EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

domingo, 9 de outubro de 2011



PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA
REVISTA DIGITAL LITERÁRIA
12/outubro/2011
ANO 2 — 64

 NESTA EDIÇÃO:
VISÕES: obra de Marília Chartune  
 ARTES E SONHOS DA INFÂNCIA




ANA COELI
Auroras da Infância

No tempo em que eu era criança, os dias eram claros e as brincadeiras seguiam o ritmo das estações. Havia tempo da bola de gude, jogar peão, carrinho de rolimã, toca, barra bandeira, cobra cega, casinha e batizado de boneca. Quando chegava a primavera a natureza se lhes revelava um intenso um rol de possibilidades, carregada de flores e fortes ventos, onde os meninos da vizinhança faziam suas pipas com leves papeis de seda e com elas coloriam o azul do céu, que lá no alto pareciam borboletas esvoaçantes.
Em noites de lua cheia, cantiga de roda nas calçadas, passa anel, estátua, amarelinha, jogar pedrinha, pula corda... Até que a mãe num grito de ordem chamar para dormir. Domingo então era especial, acordar bem cedo com o sino da igrejinha, ficar quieta na cama e contar as sonoras badaladas chamando fiéis para a missa, dia de vestir a melhor roupa, batizado, almoço com os parentes, festa na praça, comer pipoca e girar no carrossel de cavalinhos até ficar tonta de felicidade.

As tardes de verão eram cercadas de alegria, chuva forte e cheiro de terra molhada, logo que o sol surgia, todas as crianças corriam com seus vidros para aprisionar as formigas de asas, pelo qual era motivo de pequenas crueldades infantis. De uma folha de mamona e seu pecíolo fazia-se um canudo. No copo, água e sabão materializavam efêmeras bolinhas de sabão que roubavam as cores do arco-íris em instantes de magia.
No tempo que eu era criança, podia brincar na rua, contar história, trocar gibis do Bolinha, Saci-Pererê, Luluzinha, Mickey, Pato Donald, Zorro, Fantasma, Batman, (os preferidos dos meninos) correr e sentir o vento no rosto, caçar borboletas, deitar na relva, descobrir desenhos nas nuvens e quando fechar os olhos, ouvir distante o canto do pássaro ferreiro quando o sol alcançava seu zênite no céu.
Auroras da minha infância têm aromas de lembranças, recheadas de nostalgia de uma saudade que não tem fim...
Ana Coeli

 ANA COELI é escritora e poeta. Vive na Paraíba — Brasil


 EDSON GABRIEL


JOVENS TARDES DE DOMINGO

O tempo já vai longe. Tão longe que as lembranças se misturam, conectam-se, atrapalham-se. Algumas, mais lúcidas, se apresentam e marcam presença em nossa memória. Dizem presente. Como bem lembrou e escreveu Gabriel Garcia Márquez “a vida que a gente tem é a vida que se lembra para contar”, na introdução do seu livro de memórias Viver para Contar.
Pois bem. Puxo pela memória a vida que tive e a lembrança vai me trazendo aos poucos meus tempos de infância, na cidade mais que pequena, o almoço comedido e esperado de domingo, a divisão milimétrica pelas bordas do copo do refrigerante doce de maçã, os lábios lambidos pela língua molhada com o molho de tomate do macarrão.
Depois do almoço, não tinha a Turma do Didi, porque televisão não tinha não, um certo tempo de espera, em meio às sombras domingueiras e acomodadas das muitas árvores frutíferas do quintal da chácara onde morava, seguido de um banho no chuveiro improvisado, sem cobertura, com a água caindo morna e lavando a poeira que invadia a casa da família erguida quase à beira da rua sem asfalto, sem calçamento, imersa na poeira da terra marrom escura.
Depois do banho, a roupa limpa, lavada e clareada em curtição solar, de fazer dó, roupa de sair, de domingo, de passear (costume que carrego feito raiz fincada profundamente até hoje: tenho roupa de trabalho e roupa de passear, de sair, de visitar amigos, de comer fora, de viajar). O corpo de moleque magrelo e também curtido pelo sol aceitava o esforço de passar pelo ritual, pois o que vinha pela frente era muito bom, muito mais que bom, era essencial para enfrentar a semana que vinha pela frente.
Sem medo do sol ainda teimoso, lá ia eu no meio início da tarde de domingo, ladeira acima, pela rua esburacada e empoeirada, desviando de algum cachorro recalcitrante, a caminho da praça central da cidade, onde ficava o imponente prédio do Cine Granada. Levava no peito a ansiedade da espera e no rosto algumas gotas de suor. Levava no andar garboso o orgulho de ser um dos poucos meninos da periferia da cidade que se aventurava, com o exato valor do ingresso no bolso, nas trilhas da sessão de cinema conhecida por matinê. Nem era assim que se escrevia. Mas nem me lembro de qual adaptação linguística era feita na palavra francesa, com dois “es” e com certo abuso de acentos, peculiar daquela língua. Às vezes tinha uns trocos a mais, que permitia a compra de duas ou três unidades da bala “piper”, dos “dadinhos dizzioli” ou da bala “toffee”. O bombom “sonho de valsa”, nem pensar... o chocolate “diamante negro”, ó céus... Apesar dessas limitações, poder ir à matinê era algo muito maior do que ver e lamber com a testa aquelas gostosuras.
Na entrada do cinema, todas as etapas do ritual eram majestosamente cumpridas: chegar antes e ver os cartazes do filme a ser exibido, trocar poucas palavras com algum conhecido, compor a fila, trocar o dinheiro pelo ingresso, apresentar o ingresso na porta de entrada e... entrar, glória suprema.
Já dentro do cinema, depois da cortinas de tecido vermelho e grosso, uma enorme rampa com fileiras de assentos dobráveis de madeira nobre, nos aguardava. Aos poucos, aqui e ali, uma a uma, as vagas eram preenchidas com os lugares no centro da rampa ocupados mais rapidamente. Enquanto aguardávamos o início da sessão, sempre após o escurecimento paulatino do salão, o vozerio era um entusiasmo só, misturado aos cheiros e aromas das balas, dropps e chocolates, que alguns faziam questão de mastigar com a boca aberta. O último sinal era dado pela música tema do filme “Amores Clandestinos”. Começava a melodia, as luzes se apagavam e a tela dava os primeiros sinais de que o paraíso abria as portas.
E então, num passe de mágica, num clique vitorioso, o maravilhamento começava: Mazzaropi, Tarzan, Marcelino Pão e Vinho...Zorro, Capitão Marvel...
E a vida começava e acabava por ali mesmo, num espaço de cerca de duas horas, no escurinho do cinema, nas matinês das jovens tardes de domingo.



EDSON GABRIEL é escritor. Vive em São Paulo — Brasil


JULIETA FERREIRA



ONDE MORAM OS ESTRANHOS?


Depois de tanto ouvir falar dos estranhos e das repisadas advertências para estar de sobreaviso e se afastar deles, a criança, de olhar límpido e expressão cândida, indagou:
Onde moram os estranhos?
E o adulto vacilou, logo se recompondo. A resposta seria vaga ou nula, como quase sempre que o adulto fala com a criança. Tanta sabedoria e experiência derrubadas de uma assentada, qual pirâmide de blocos que oscila ao mais pequeno sopro. O adulto não quer perder tempo a pensar, tão empenhado que está em educar e proteger a criança. Ou talvez seja uma fuga a camuflar o receio daquilo que ele próprio poderia vir a desvendar.
Onde moram os estranhos?
Será que moram em condomínios ou em barracas? No apartamento do lado ou no lajedo húmido e frio das estações de metro? Nas moradias junto à praia ou nos albergues? Nas avenidas novas ou nos bairros de lata?
E a criança, na sua ingenuidade incomodativa, quis saber:
Quem são os estranhos?
O adulto, tentado acalmar a sua impaciência, sorriu a custo, presenteando a criança com o sinónimo desconhecido, numa parca solvência de tão legítima indagação.
A criança, sem ter aprendido ainda as regras dos diálogos dos adultos, insiste em saber se o pai do menino que vive no segundo andar é um estranho. É que a criança nunca tinha visto o pai daquele menino e não sabia onde ele morava.
O adulto fez um trejeito de enfado e apressou-se a desviar a atenção da criança para os brinquedos abandonados no meio da sala. O adulto não tem tempo para explicações. O tempo é coisa escassa quando se deixa de ser criança.
Quem são os estranhos?
Serão aqueles com quem nos cruzamos, todos os dias, pelas ruas da cidade onde habitamos? Serão aqueles que se sentam ao nosso lado, de semblantes fechados ou sorrisos prazenteiros, nos autocarros a abarrotar? Aqueles que nos insultam ou nos cortejam? Aqueles que comem a mesma comida, na mesa a dois passos de nós, num restaurante qualquer? Ou serão também esses que julgamos conhecer e nos apanham desprevenidos por tanto confiarmos?
Mais tarde, brincando no jardim, a criança ouviu, surpresa e confusa, a admoestação de um passante, dirigida à menina que parara, inadvertida, entabulando conversa com o adulto.
Não te disse, tantas vezes, para não falares com estranhos?
E foi aí que a criança decidiu que jamais viria a ser um estranho.


JULIETA FERREIRA é escritora    — Vive em Lisboa — Portugal



MARÍLIA CHARTUNE

A CRIANÇA NA ARTE


Há como inserir no universo lúdico da infância um espaço para a arte não unicamente para formação e não se deve ter receio de preencher com informações que parecem supérfluas sob o ponto de vista educacional quando se mantém um nível de atividades paralelas saudáveis. Prova disso é a notável tendência de educadores sensíveis e capacitados, tanto no eixo familiar, como na escola, que orienta prováveis talentos para o ofício da arte.
Participando de uma seleção e premiação em um concurso de desenhos alusivos ao aniversário da Base Aérea de Santa Maria, RS, se pôde constatar que as escolas se inscreveram e os alunos participantes pertenciam a um seleto grupo em que professores de educação artística se empenharam em ensinar composição, cor e forma, deixando o cunho artístico e criativo a critério dos alunos. A comissão julgadora, mesmo sem conhecimento prévio, premiou principalmente os que fazem cursos paralelos aos regulares, porque se destacaram tanto na lógica como na técnica dos demais, com honras aos professores e alunos.
Portanto, acredita-se que a formação artística desde a mais tenra idade, proporciona base sólida para o futuro, pois arte é intuição, sobretudo, formação técnica para que se expresse com clareza e senso estético.
O Congresso Latino Americano de Educação Através da Arte realizado no Rio de Janeiro em 1978 trouxe em pauta muitas questões a respeito da preferência literária e dos quadrinhos na formação das crianças. Em uma “Mesa Redonda” com Henfil, Ziraldo, Maurício de Souza, conhecidos criadores de histórias infantis e grandes cartunistas, da qual participei como aluna, se concluiu que a preocupação em mostrar a filosofia inserida nas personagens é compreendida de acordo com o leitor ou observador. Quando se é criança muitas informações passam despercebidas porque o objetivo é a leitura e a imagem, mas ao passar do tempo, o adulto vê que as mensagens subliminares são muito mais fortes do que aparentavam.
Muitas criações, supostamente destinadas ao público infantil, se enquadram no universo adulto e são clássicos. Manifestações culturais como a literatura, a dança e a música geralmente encantam a todas as idades, mas precisam de linguagem técnica na produção, no entanto, considera-se que as artes consideradas plásticas têm uma linguagem universal mesmo sem ser requisito ter uma formação técnica ou acadêmica para serem executadas. A liberdade de expressão da criança pode sofrer perdas à medida que vai acumulando informações e conceitos, mas cabe aos educadores respeitarem a iniciativa e a criatividade, mesmo com o objetivo de formar profissionais.

Marilia Chartune Teixeira
Artista Plástica
Vive no Rio Grande do Sul     —    Brasil


 NIL MEDEIROS

 
Era uma menina,

Que pulava corda,

Dançava roda

Soltava balão







Que nas noites de lua

Corria pra rua

Pés descalços ao chão

E nas festas juninas

Dançava ciranda

Forró e baião

Tinha olhos castanhos

Cabelos compridos

E sorriso em flor



Era Rosa, Amélia

Maria, Camélia

Era Ana e Dasdô

E ao som das cantigas

Sorria pra vida

De um jeito especial

E cantava

E dançava

E vivia sem pressa Num mundo só seu.


NIL MEDEIROS é escritora e poeta.    Vive em Alagoas    — Brasil



REGINA SORMANI
 
VOCÊ GOSTA DE CINEMA?



A história da minha família se mistura com a história do cinema na cidade de Agudos. Meu avô, pai da minha mãe, Fortunato Andreotti foi o primeiro empresário cultural da cidade. Ele arrendou a sala de exibição que pertencia à senhora Carolina Rocha e para lá conduziu a banda Ítalo-Brasileira. Ora, uma banda dentro de um cinema? Sim, estou falando dos filmes mudos nos primórdios do cinema. Essa banda reunia integrantes das famílias dos imigrantes italianos. Dela, faziam parte: meu avô, meu pai, tios primos e amigos, todos músicos de primeira. Uma das funções da banda era acompanhar as cenas dos filmes mudos, interpretar com sons e melodia as cenas que se passavam na tela: paixão, medo, euforia, drama, tristeza, alegria. Tudo isso me foi contado pela minha mãe, que acompanhou o passo a passo da história do cinema em Agudos. Lá, na terrinha querida, nos bons e velhos tempos, juntamente com os bailinhos e as rodas de violão, curtíamos muito o Cine Teatro São Paulo. Durante minha infância e juventude a empresa cinematográfica Zonta possuía os direitos de exibição dos filmes. Crianças, jovens e adultos, podiam, caso desejassem, ir ao cinema, todas as noite, de terça à domingo. Às segundas, quando o filme de domingo era reprisado, a sala ficava praticamente vazia.. O preço do ingresso, muito convidativo, começava com zero, custava apenas alguns centavos. Lembro-me da noite de inauguração da nova sala e do filme de Disney, em cores que foi exibido. Um sucesso! O cinema ficava ao lado do Agudos Tênis Club e de frente para a praça da cidade, onde, à noite, as meninas faziam o footing (do inglês: passear). A maior bilheteria alcançada pelo nosso cinema foi na época do lançamento do “O CORINTHIANO”, produção de Mazzaropi. A fila para comprar ingressos dobrou o quarteirão do cinema e o filme foi reprisado três vezes, para glória dos pipoqueiros e das sorveterias da praça. As garotas do meu tempo suspiraram e se apaixonaram pelo ator-galã que interpretava o marido de Sissi, a Imperatriz, filme estrelado pela graciosa atriz Romy Schneider. As matinês dominicais ficavam lotadas, pois os meninos iam lá torcer pelo Tarzan e pelo Zorro. Claro que o Bem triunfava sempre. E a torcida era enorme. Aos gritos, a gurizada aplaudia os heróis e vaiava os bandidos. Quando acontecia da bagunça ficar insuportável, lá vinha o “lanterninha” para iluminar a cara dos mais assanhados. Era uma diversão à parte! Gosto de entrar no cinema para assistir a um bom filme, em boa companhia e, de preferência saboreando deliciosas pipocas. E você?

REGINA SORMANI é escritora e poeta.    Vive em São Paulo    —    Brasil

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Esta edição temática de PALAVRA FIANDEIRA foi lançada em 12 de Outubro de 2011, e reuniu escritores especialmente convidados por MARCIANO VASQUES 


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PALAVRA FIANDEIRA é uma publicação literária fundada pelo escritor Marciano Vasques
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A obra da capa desta edição é da artista MARÍLIA CHARTUNE
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JULIETA FERREIRA é escritora de Portugal que terá uma edição de PALAVRA FIANDEIRA com sua entrevista.
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