EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

PALAVRA FIANDEIRA - 41

PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA
ANO 1 - Nº 41 - 20/setembro/2010

NESTA EDIÇÃO:
 Diretamente de Portugal:
RACHEL OCHOA
Por Carmen Ezequiel

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SOMBRAS COMUNS

por Carmen Ezequiel


Tenho uma câmara fotográfica nova.
Daquelas pequeninas, jeitosas, que dá para colocar no capacete, no braço, no guiador, na água ou ao sol… para tirar fotografias várias. Sabem, é que sou fanática por fotografia. E, adoro fotografar-me! Modéstia à parte, mas sou muito fotogênica!
Mas, esta câmara é diferente! É mais leve, mais jeitosa… assim, como eu!
E, com ela, posso unicamente colocá-la na minha cabeça e escalar!
Subir uma montanha íngreme e sinuosa, onde pacificamente se sente o sabor do vento!
Onde se refrescam os pensamentos (os meus, claro!) e se arejam as emoções (as minhas, pois sim!). Se perde a raiva e o ódio da hipocrisia e a angústia da monotonia perdida nas mentes insanas (isto acontece-me com frequência! – Que raiva tenho da hipocrisia!).
Se olha o sol laranja de frente e se alcança o céu velozmente. E, no final da jornada, bem lá no topo desta montanha amontoada de frescura; abraço e abarco uma felicidade total.
Amanhã irei nadar – Penso.
E, de novo levo a minha frenética câmara nova (ou, sou eu que estou frenética?) para, com ela, saborear a água salgada do mar imenso. Onde os peixes, encarnados, azuis, verdes, lilases, coloridos ou incolores, são reis. Ou, rainhas. Deve haver fêmeas, não?
Isso não interessa. O que interessa é a liberdade de sentir a suavidade da água; partir numa aventura pelas profundas águas do oceano esverdeado de plantas e algas, cavalgar num cavalo-marinho, surpreender-me com a beleza do fundo do mar e, transformar-me numa sereia contadora de histórias, com uma beleza provocadora e assaz impossível. Vir à tona e, pela primeira vez, pisar a areia da praia e sentir os seus grãos quentes do amor que fazem com os raios de sol. (Afinal, aqui já estou a sonhar… acordada. Acordo mesmo é em frente ao Oceanário e embarco, então, numa viagem virtual ao fundo dos oceanos.)
Depois, e ainda de câmara em punho… ou, na cabeça, saio e procuro por ti. Num misto e misterioso compacto de emoções resgato-te do único inimigo da alma: a preguiça!
Juntos, levamos para casa as memórias de um tempo bem passado, que junto ao meu capacete de BTT percorri, contigo, horas a fio, esses caminhos da natureza, verdes da vegetação mais pura e ainda existente. Lamacentos, e gostosos para a minha e tua viagem, de uma curta passagem da chuva. O pássaro que brinca com o vento ameno, as vacas ruminantes numa calmaria louca. O percurso aprazível e campestre destes 30 km de aventura. Sou eu e tu. Passamos velozmente nestes campos de uma lezíria real, reclamando um tempo só nosso!
Tenho uma câmara fotográfica nova e, com ela, posso gravar um momento, captar uma emoção, guardando-a para sempre.
- Que pena que não seja minha! – E, depressa a devolvo à Raquel.



É com esta pequena viagem que se inicia SOMBRAS COMUNS, que nos convida a conhecer mais uma pessoa fantástica, com uma luz interior resplandecente e que já vem sendo habitual nestas andanças do PALAVRA FIANDEIRA.
Aqui, do topo da alta montanha, avistamos a viajante.
Aqui, neste espaço de tempo, lê-se a escritora.
Aqui, e agora, vos apresento a Raquel Ochoa, que pertence a Sintra e, a muitos outros lugares.


Carmen Ezequiel (PALAVRA FIANDEIRA) – Como já vem sendo hábito em Sombras Comuns e para te conhecer melhor, podes falar-nos um pouco de ti? Quem é Raquel Ochoa?
Raquel Ochoa – Uma mulher que aterrou no planeta Terra há 30 anos e que tem a sorte de já ter viajado por alguns dos seus cantos redondos. Gosto de escrever histórias com interesse – aquela história – e não escrever por escrever. Já no capítulo viagens posso ir para quase qualquer parte do mundo, quanto menos familiar melhor. Evito cenários de guerra, de resto alinho em quase tudo. Nasci e cresci em Sintra, no seio de uma família maravilhosa, sempre tive muito ligada à natureza. Licenciei-me em Direito em 2004 mas desde aí dediquei-me à Literatura. Escrevi três livros em ordem decrescente: A Casa-Comboio (2010), Bana-Uma Vida a Cantar Cabo Verde (2008), O Vento dos Outros (2008). Três livros sobre três diferentes continentes. É elucidativo.
Tudo na vida é difícil. Ser escritor é um bocadinho mais.”
Raquel Ochoa
CE (PALAVRA FIANDEIRA) – És uma viajante… (mais à frente abordaremos um pouco essas viagens). Por ora, pergunto-te; em Portugal, qual a cidade com a qual mais te identificas ou que poderá ser o refúgio a essas constantes jornadas?
RO – A minha cidade seguramente é Lisboa, embora Lisboa seja mais parecida com uma aldeia do que com uma urbe. Mas na verdade não sou muito de cidades. Conheço bastantes e gosto de as ver e desfrutar, mas nunca permaneço. Sou uma criatura do Campo. Sintra é o meu poiso. Mas vou muito ao Alentejo e também a Trás-os-Montes onde tenho raízes. E alguns segredos bem guardados no Algarve.

  Nepal

CE (PALAVRA FIANDEIRA) – Literatura e arte. Encontram-se no mesmo patamar de existência? E, a poesia?
RO – Literatura é arte, há alguma dúvida? A prosa é uma mulher cheia de razão a dizer verdades de forma ordeira. A poesia é uma mulher genial e embriagada a gritar verdades ou impropérios, sem tento na língua.
CE (PALAVRA FIANDEIRA)  – Reportando-nos ao que se lê em Portugal; achas que se lê literatura a sério ou se faz literatura a brincar?
RO – Para mim literatura tem de ter uma mensagem. Talvez chames literatura a brincar, a literatura que parece nada dizer, sem profundidade. O público não é parvo embora as leis de mercado assim o queiram tomar. O público sabe o que é bom, o menos bom ou o mau. Os escaparates e os interesses comerciais toldam alguma capacidade crítica mas não a subvertem. Sim, estamos inundados de literatura a brincar mas nada disso é intemporal – daqui a 5 anos já ninguém compra aquele autor hoje considerado da moda. A literatura quando é a sério resiste a tudo.

CE ( PALAVRA FIANDEIRA)  – Com o “boom” das tecnologias e o crescente aumento de “vidas virtuais”, fica mais fácil para cada pessoa explorar a sua “veia literária”? Com a dimensão com que surgem os blogues e os blogueiros, todos são passíveis de ser considerados de poetas e legíveis como tal? Como sentes e vês essa nova imagem da sociedade?
RO – Há calhamaços de grande qualidade nos blogs nacionais e internacionais. A PALAVRA FIANDEIRA, por exemplo. Acho fantástico que as pessoas divulguem o que pensam. O problema é quando não são lidos – porque é impossível captar tanta informação. Esse é o outro lado das novas tecnologias: toda a gente “publica” mas ninguém anda a ler aquele livro. Volto a dizer, a mim o que me interessa é contar Aquela História, porque tenho a certeza que se eu não a contar ninguém a conta, acreditando piamente na sua urgência e validade. Às vezes os blogs não contam história nenhuma, não opinam, nada. É verborreia. Fica publicado, mas ninguém lê, pois claro.
Quanto tempo dura um minuto? Qual é o máximo de tempo que pode demorar um minuto?
Se for um minuto de desespero, pode lá caber uma vida inteira.”
In A Casa-Comboio, pág. 146, 147, Raquel Ochoa, Gradiva Publicações
CE  ( PALAVRA FIANDEIRA) – Num minuto apenas, relata-nos a história inteira à volta do teu romance A Casa-Comboio?
RO – É um romance arrepiante se as pessoas se lembrarem que é quase por inteiro uma história verídica. Conto a saga de 4 gerações da Família Carcomo, cada uma delas enfrenta desafios muito diferentes. É uma viagem no espaço e no tempo, quando o leitor chega ao fim, creio eu, tem uma visão maior do mundo porque entende melhor o que aconteceu na Índia ao longo do último século. Ao mesmo tempo nunca sai de território português. Às tantas faz confusão, é verdade, mas as histórias são tão portuguesas que percebemos muito bem os personagens, três homens e uma mulher de uma valentia notável.
É um romance com horizontes alargadíssimos. Ao fim e ao cabo conta-se ali a história de cada um de nós, pois o que queremos, sempre, é estar ao pé daqueles que amamos.

Índia
E vou eu para a Índia!”..., pensou Clara, “se Portugal é o terceiro mundo, onde é que eu me estou a meter?”
In A Casa-Comboio, pág. 269, Raquel Ochoa, Gradiva Publicações
CE ( PALAVRA FIANDEIRA) – Este excerto do romance reporta-nos a 5 de Março de 2001. Esse foi um ano que perturbou o mundo inteiro, não fossem as questões político-sociais em que nos encontrávamos (?). Politiquices à parte, Portugal continua a ser terceiro mundista? Ou, achas que estamos a evoluir, lentamente? Ou, ainda, pelo contrário, continuamos a ser o pequeno país onde apesar das dificuldades, tudo está bem?
RO – Vivemos no melhor país do mundo (ou quase)! É pena a corrupção e a mesquinhez social, mas se esquecermos isso é um país que deixa qualquer estrangeiro embasbacado, quer pelas paisagens quer pela cultura. Espero que com as novas gerações aprendamos a ser mais simpáticos no trato e mais educados a conduzir. O grande problema de Portugal, parece-me, não é a falta de produtividade e sim o compadrio e caciquismo que permite que a nata, nas várias áreas, seja preenchida por pessoas sem mérito. Mas que há muita gente com mérito, há.
A prosa é uma mulher cheia de razão a dizer verdades de forma ordeira.”
Raquel Ochoa
CE ( PALAVRA FIANDEIRA) – É difícil ser escritor em Portugal? Quais as dificuldades para quem se quer iniciar e como deve fazê-lo?
RO – Tudo é difícil na vida. Ser escritor é um bocadinho mais.
Qualquer tarefa que se comece parece gigantesca. Ora, na escrita, para o fazermos bem, há que escolher bem os livros que vamos escrever e fazê-lo ponderadamente. Neste caso é muito difícil fazer um bom trabalho com pressa. E depois um escritor com um ou dois livros, ou mesmo com três como é o meu caso, é uma piada! Quando muito podem considerar-me uma promessa, pouco mais. A chatice disto tudo é que a barriga não se compadece destas filosofias. Grita por comidinha, tecto, automóvel que nos leve aos sítios, umas roupitas apresentáveis, uma loucura por mês – por exemplo ir jantar fora.
Então chegamos ao busílis da questão: o escritor, vou falar no feminino, a escritora é a super-mulher. Os escritores são maltratados por todos os agentes do processo editorial e no meio disto tudo, são os que escrevem.
A verdade é que quando começamos o dia com um email de um desconhecido a agradecer termos escrito tal obra temos o dia ganho. Ser escritora é ter fé de que um dia aquelas palavras vão ser úteis ao mundo, caso contrário, não se é escritor, é-se suicida.


CE ( PALAVRA FIANDEIRA) – Sem celebridades, mas com notoriedade pelo teu trabalho; como foi para ti receber o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís 2009, instituído pela Estoril-Sol? E, aquando a atribuição do prémio, foi importante recebê-lo pelas mãos do Exm.º Senhor Presidente da República Portuguesa?
RO – Primeiro foi o choque. É aquela sensação de isto só poder ter acontecido por intervenção divina. Jamais imaginaria. Depois são os frutos que se colhem. Na verdade tudo muda com o prêmio as dificuldades que falava há pouco mudam de sabor amargo para o salgado. E de repente parece que posso mesmo dedicar-me à escrita sem medos. É uma alegria que ainda não cabe em mim. Fiquei vários dias sem saber se era mesmo verdade.
Receber o prêmio das mãos de Presidente da República torna tudo ainda mais especial pelo simples fato dele representar a nação. Escrevi em português para os portugueses uma história indo-portuguesa. Só me resta responder, sem falsas modéstias:
- De nada meus senhores, o prazer foi todo meu.

CE (PALAVRA FIANDEIRA)  – Com os meus olhos te olho e com o coração sinto tudo aquilo que as tuas palavras me transmitem. É assim que descubro as viagens inscritas no teu blogue “o mundo lê-se a viajar” (http://www.omundoleseaviajar.blogspot.com). Diz-nos… viajar e escrever são dois verbos que se e te complementam? Que outros verbos fazem a tua tónica de vida?
RO – Viajar e escrever. Os meus grandes prazeres. Estão unidos, viajar é a mão da esquerda, escrever a da direita.
Mas chamo à minha vida outros: conviver, ajudar, trabalhar (ui, ui tanto!), abraçar, abraçar, abraçar, regressar, sonhar, aprofundar, esperar (tem de ser), surfar, observar.

A poesia é uma mulher genial e embriagada a gritar verdades ou impropérios, sem tento na língua.”
Raquel Ochoa
CE ( PALAVRA FIANDEIRA) – O que pode ser menos bom como resultado dessas sistemáticas viagens? Dá, aos olhos de quem lê, a imagem daquela que mais te tocou.
RO – Não sei se acontece com todos os que viajam… A mim, às tantas, se não tiver cuidado e os pés bem assentes no chão, pode dar-me uma certa ansiedade de conhecer mais e mais, como se de repente fosse uma glutona de países, sem neles tocar. Nos últimos três anos viajei menos por questões pessoais e econômicas e reaprendi a viajar. Foi uma grande lição. Para mim uma viagem, tal como cada livro que escrevo, é uma grande conquista. Viajar é caro à brava e ter tempo para o fazer também altera todo o estilo de vida. “Quando voltar à estrada” voltarei a dar o real valor a bênção infinita que é conhecer os outros lugares. Para mim continua a ser a experiência que mais me ensina.
Não tenho nenhuma má experiência em viagem. Tive princípios de más experiências mas que acabaram em bem. 


CHILE
CE ( PALAVRA FIANDEIRA)  – Para terminar, queres deixar alguma palavra aos leitores de Palavra Fiandeira?
RO – Quem lê exerce a maior e mais incondicional de todas as condições – a liberdade.
Este espaço é uma troca simples e saudável e de cumplicidades literárias. Identifico-me.

Raquel, obrigada pela troca de cumplicidade literária, nesta entrevista e noutra ocasião e, pela simplicidade com que me mostraste o quanto eu também me identifico com o prazer que nos dá escrever.
Aqui, fala-se de tudo e de nada.
De tudo o que somos.
De nada que ninguém é.


Carmen Ezequiel

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CARMEN EZEQUIEL

 Carmen Ezequiel é poeta, escritora, cronista, blogueira, humanista, ativista cultural, correspondente e colaboradora de 
PALAVRA FIANDEIRA em Portugal.
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PALAVRA FIANDEIRA
Fundada por Marciano Vasques
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