EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

domingo, 30 de maio de 2010

PALAVRA FIANDEIRA 30




PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA
ANO 1- Nº 30 - 30 DE MAIO DE 2010

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 NESTA EDIÇÃO:

MARGOT DE CASTILLO MÜLLER

MEU DIREITO DE SER CHILENA!

ENTREVISTADA POR ROCÍO L' AMAR

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" MEU DIREITO DE SER CHILENA"

Chile, preferencialmente tem se identificado por ser um país com devoção católica. Por esta razão, falar de temas com a discriminação mapuche, o racismo em razão de gênero e origem étnicas sob a forma do menosprezo; a segregação à homossexuais e lésbicas; a indolência e intolerância da sociedade para com os deficientes físicos e intelectuais, e manifestamente os doentes (por exemplo: os infectados pelo vírus HIV); a discriminação por condição social; segregação de mulheres em empregos mal remunerados do setor de serviços (por exemplo: secretárias, conselheiras de casa, telefonistas, camareiras, vendedoras de lojas, babás, etc); a violência masculina, física e psicológica em alguns setores da população - contra mulheres,
crianças, anciãs; o mau tratos de animais, com em tempo pré-históricos, xenofobia e exploração no trabalho - em discriminação e preconceito - contra os imigrantes latino-americanos, que às vezes alcança até a segunda ou terceira geração de filhos destes; assédio sexual no âmbito do trabalho ou outros comportamentos baseados no sexo, que lastimam a dignidade da mulher e do homem; discriminação por motivos ou tendências religiosas; por idade; que prejudica aos maiores que frequentemente procuram trabalho; a roupa; as profissões ; orientações políticas diferentes; intimação e represália institucional e aleatória que os homens praticam contra mulheres as mulheres ao largo da história; genocídio, entre outros, aqui e agora, é para se estranhar, ainda que seja sabido que algumas destas formas de descriminação também ocorram na grande maioria dos países de América Latina. Entretanto, Chile, um país donde tudo parece inultrapassável, perfeito e maravilhoso, atribuindo-se ser os "jaguares de Latino
América, a potência econômica de América do Sul", - sem terremoto ou com terremoto- arroja resultados poucos alentadores de acordo com estudos sobre o tema, refletido em trabalhos constantes de organismos, estatais e particulares, cujos relatórios nos informam que ainda faltam muitos aspectos para legislar - e ainda falta muito caminho para percorrer.
Mas, felizmente, nem todos os chilenos exercem estes tipos de atos ou ações ou fatos. Há quem reconheça às outras pessoas no que elas sejam, discutem polemiza, dialoga em igualdade de condições, ainda que "Chile é um país extremamente diverso, - nos disse José Bengoa, Licenciado em Filosofia e Acadêmico da Escola de Antropologia de Universidade Acadêmica de Humanismo Cristão -, e portanto, sempre tem havido uma luta entra a diversidade e uma homogeneidade na cultura chilena, o que vem sendo reforçado enormemente com a televisão".
O fato é que, de igual forma se pratica a discriminação desde o interior do parnaso literário/ cultural chileno ou de elite se de mulheres se trata. Com as editoras ocorre a mesma coisa, por que na hora de decidir a quem publicar, são os homens quem levam vantagem. Com as feiras de livros acontece o mesmo, o número de textos exibidos é enormemente superior aos das mulheres, e na linha de antologias das obras das mulheres - no instante de selecionar - também atravessam diversas dificuldades. Por outra parte, a crítica literária, essa, a exigente, a do setor acadêmico masculino, não tem muito olhar, nem sequer como exercício prático, para traçar alguns rumos com respeito à obras de mulheres autodidatas, ( Tampouco os politicólogos, em seu discurso formal põem o dedo na ferida, donde se encontra infeccionada, especialmente e sanguinariamente e grosseiramente, a cultural. E sem perder de vista a discriminação por sexo, para deixar fora e marginalizar as mulheres, permitam-me um momento de ruído, não por que haveriam de notar obrigatoriamente este desacordo entre homens e mulheres, senão por que ambos - gêneros humanos- travam um papel decisivo na literatura contemporânea. As mulheres igualmente podem falar das mesmas coisas, como sujeito de direito e não como objeto.
Porém se de império se trata, a discriminação também tem se intensificado e supõe uma ameaça para a Língua Castelhana, ou o uso do idioma Castelhano ou espanhol. (considerando que há que ser bilingue até trilingue para ter certa notoriedade e aceder à informação e difusão nesta época).
Nesta análise prática que deriva da racionalidade, independente se me distancio ou me aproximo em minhas próprias opiniões, - segundo o tema em questão  todavia, ficamos a nos perguntar por que são discriminadas - em um ou outro sentido - pessoas de pele branca que têm os olhos ou o cabelo de uma outra cor, baseando-nos na premissa de que sejam imigrantes que se assentaram em locais rurais de Chile (zonas camponesas ou étnicas) em busca de paz, bem estar econômico, social e familiar.
Assim sendo, edificando ou subtraindo e exemplificando ao tema, tentaremos gerar consciência sobre este tipo de discriminação em particular, projetar um pensamento para a integração e tratar de remover esta monomania contra descendente de estrangeiros, contra Margot Del Castillo Müller, segunda geração no Chile de alemães/austríacos por parte materna, - colonos da zona de Porto Varas-. E extremeña/valenciana por parte do pai..
Residente em Mulchén há sete anos, Margot del Castillo é poeta, pintora, gestora cultural, presidenta do Centro Cultural Antumapu. Seu primeiro livro editado recebeu o título de "Chamana", obra que não conheço, e por isso não posso opinar. Mas foi o poema "Meu direito de Ser Chilena" que chamou a minha atenção, e minha atenção até aos imigrantes. Até às pessoas estrangeiras que são vítimas especialmente vulneráveis neste Chile, às vezes, discriminador.
Como resultado da pesquisa, encontrei-me com um poema, um acróstico sobre a discriminação, que de alguma forma põe o assunto em questão. É a visão de um poeta, Nelson Dion ( que previamente introduz este preâmbulo), "a discriminação é o recurso dos desprovidos de argumentos", e que quero com vocês compartilhar:
*ACRÓSTICO DISCRIMINACIÓN
Diferente me percebes, o noto no olhar
Injusta que refletem teus olhos e no gesto
Sombrio de teu rosto dizendo que incomodo
Com toda a soberba de quem não diz nada.
Reticente pensamento: mãos aflitas
Inclusive quando apagam, sociais, o funesto
Motor que regenera os ódios manifestos
Impressos na noite das bravatas.
Não busco tuas misérias, tampouco tua derrota,
Amarga sensação de vencer a uma alma rasgada
Com toda sua raiva fluindo torrencialmente.
Intensifique a tentativa de compreender as falácias primaveris.
Ocultas e em massa mais tarde nos exploram
Nublando a razão com vãs sem-razões.
Enfim, tratemos de encontrar as respostas com Margot del Castilllo:
1. De acordo com a sua raça branca, você é loira, de olhinhos coloridos - como se diz em Chile, alta, bonito corpo, etc, etc. Conte-nos em que lugar nasceu sem deixar de lado a sua genealogia, já que acreditamos que seja fundamental refletir explicitamente acerca da discriminação contra os imigrantes.
- Nasci em Vitória, (Oitava Região) dentro de um seio de família tradicional. Composta de pai filho de espanhol e mãe filha de alemães... Sou a maior de três. a ovelha negra, ou loira? E a mais questionada dos irmãos...
Minhas primeiras recordações são as rixas produzidas pelo idioma materno com minha avó paterna, dona Ana... e sim que era Dona. Tudo começava quando minha mãe falava em Alemão... Havia guerra...que eu não entendia, que seguramente estavam se tornando "mal". Enfim...Pela harmonia familiar minha mãe deixou de fazê-lo e perdemos a oportunidade do idioma. .. Havia uma batalha constante , sigilosa entre os ramos da família, se bem que não se dizia nada que alterasse os bons costumes, hoje tenho claro que para meus pais que não deve ter sido fácil, por isso emigraram até Parral... Somando-se em mudança a minha avó Ana (Calvário de minha doce mãe) quem se encontrava separada e em total abandono a viver conosco...para sempre..."literalmente".
Para mim, desde menina, foi claro que haviam "diferenças". Ser "loirinha" poderia ser vantajoso...Salvo que os alemães "São brutos", só servem para o trabalho...Os espanhóis são "frouxos", vivem para a festa... e nessas visitas ao campo, quando com a inocência de crianças queríamos jogar com os filhos do inquilino...recordo a voz escura que lhes gritava: Deixem em paz esses gringos de merda! Onde já se viu brincar com os "espiga de milho"?
Palavras marcantes quando se cresceu com a certeza de que somos iguais.
2. Biologicamente, nós, mulheres e homens, somos diferentes, porém todas as atribuições ao gênero são de origem cultural, incluindo a validação do controle de uns sobre os outros, isto é, do sexo forte (homens?) sobre o sexto frágil (mulheres?). Concretamente, de que maneira experimentou você esta subestimação - sexista - como neta de imigrantes, e a que prejuízos históricos e intolerância racial viu enfrentada na comunidade de Mulchén?
- Venho de um lugar onde o respeito e a igualdade eram importantes...Mesmos direitos, mesmas obrigações - sem distinção de sexos. Casei-me muito jovem e me deparei pela primeira vez com o "machismo", sem voz nem direitos. Rebelar-me custou-me o casamento...e me salvou a vida. Dois belos filhos me acompanharam na aventura de crescer.
A vida me levou a conhecer a quem hoje é meu companheiro e a radicar-me em Mulchén. Os primeiros anos eu os vivi no campo, afastada de tudo, dedicada a trabalhar na tarefa própria da atividade, e a meus filhos, que no novo enlace, eram três. Fui me inserindo na vida social dessa comunidade graças a Milena Gallegos e ao Centro Cultural Antumapu, que hoje presido...Ser mulher, loira, algo inteligente, e não muito feia, é um delito em uma sociedade patriarcal. Mas sim, se tem vocação de serviço (Chamado interesse político). Minha candidatura independente a ser prefeita (quixotada, sem dúvida) deixou-me em evidência. Fui acusada, pelas principais autoridades de minha comunidade, de fazer uso de documentação secreta do conselho, em uma campanha de desprestígio e de assassinato da imagem acusaram-me (também publicamente) de ser alcoólatra, meus esposo foi acusado pela fiscalização militar de um delito inexistente, o que o levou ao cárcere, incomunicável por 48 horas, apenas o amparo do recurso de uma advogado amigo (Na corte em Concepción) fez com que recobrasse a liberdade. Se bem que, depois de uma longa investigação, a fiscal do cargo foi exonerada e se pediram as desculpas correspondentes... Hoje sabemos que se tratava de uma espécie de amedrontamento... para que me retirasse. E o que dizer dos incontáveis roubos, e quebrações de vidro que teve que suportar o Centro Cultural nesses dias... Como anedota, lhe contarei que vivendo em Mulchén não existe nesta biblioteca meu livro "Chamana"... Foi negada a sua compra pelo senhor Prefeito. Em vista desses fatos, o temos doado gratuitamente à bibliotecas das escolas. Por parte da comunidade masculina, ( A maior parte dos votos que recebi foi de mulheres) puseram-me o apelido de "Bárbie" e puseram em dúvida a minha capacidade intelectual. Gritaram-me impropérios... Enfim...Até hoje é uma luta constante, não há espaço para nós. A grande maioria das mulheres permanece reclusa no lar. E a que se atreve, é chamada vulgarmente por um nome de quatro letras... Até para se conseguir um espaço para os nossos projetos se fazem pouco caso. Difícil tarefa temos. Só educando os jovens será diferente... Nessa tarefa estamos condenadas com todas as forças e empenho do coração.
3. Um dos relatórios da Anistia Internacional, reza, a propósito do interesse pelo direito anti-discriminatório, "Há que passar das palavras à ação"... Que proporia você para tornar efetiva a igualdade real no século XXI, entendendo que a igualdade em toda ordem das coisas é a chave social para fazer eficaz a proibição de discriminações por nacionalidade, raça, gênero, entre muitas outras...
- Há uma palavra chave...CULTURA...quando conhecemos nossos direitos podemos começar a exercê-los. Como mulheres temos a responsabilidade de erguer a voz, de denunciar, o silêncio nos faz cúmplices...
4. Você é "loira e inteligente", é poeta, é contadora de histórias, é pintora, é presidente e gestora cultural de Antumapu, tem direito a voto (risos), faz o amor ou faz amor (mais risos), é a "ovelha negra da sua família", é mãe, é avó, dança forró (baila purrún) ajuda na loja de seu esposo, abre as portas para que os amigos possam tomar uns aperitivos, se move em um povoado que não oferece muito glamour, navega pelo ciberspaço, a convidam a fazer leituras de uma massa... Qual das afirmações interessa a você destacar, e por que?
- (gargalhadas)... Creio que basicamente meu esforço diário por me manter em pé e ajudar aos outros, a fazer desta sociedade uma sociedade mais justa de direitos igualitários, e fazer de meu trabalho poético uma voz de denúncia e solidariedade.
5 - Sobre a poesia, que temas aborda? E qual é a origem e até onde apontam seus sonhos neste âmbito?
A verdade é que é bastante amplo...Escrevo poesia de ( e para) crianças, sociais, de gênero, denúncia, de amor, erótica...micro-textos, contos...Escrevo sobre a vida...Meus sonhos? Ser de alguma forma a voz dos que calam. Estou convencida que desde o momento que escrevemos e temos a honra de que nos leiam...deixa o texto de nos pertencer para converter-se na voz do leitor a partir da sua própria interpretação.
6. Partindo de uma perspectiva crítica, frente ao espelho cultural, que resgataria você da história oficial da literatura no Chile nos últimos 20 anos, e que foto tiraria do mesmo parnaso?
-Após um período escuro e doloroso de silêncio...renasce como a ave Fênix...ainda fica muito por fazer...muitíssimo, ensaiamos asas, acertando e errando...creio que falta um pouco de disância, um olhar até mais adiante, espaços para o povo de província, para os jovens...Milhares de talentos se perdem em meio à burocracia. O imposto do livro pendurado em nossos pescoços nos afoga, o controle que exercem as grandes editoras...o abandono de uma ajuda de custo, uma pensão para os escritores. Temos avançado, temos a obrigação de seguir.
7. Que importância tem para você os prêmios ou o reconhecimento literários?
O maior prêmio é a leitura de meus textos...Nunca ganhei um, assim que o ganhar (algum dia)... poderia contá-lo... A única coisa que me dificulta hoje é para o currículo...Fico alegre com os êxitos dos demais e me orgulham suas conquistas. São importante sim como um reconhecimento à qualidade
8. Justifica você essa ideologia indolente que oprime e mantém sem mais nem menos indigentes aos escritores /poetas por falta de uma lei de proteção social no Chile?
- Não, claro que não... A isso ( entre outras coisas) em referia ao dizer que ainda nos falta MUITO.
9. Visando a promoção da justiça sociocultural, liberdade de pensamento, direitos fundamentais, garantias à diversidade do humano, normas de convivência, abordagens, enfim...Sonhemos!...Você é presidenta do Chile, tem o poder de promover o bem estar geral da cultura, qual poeta ou escritor poria em seu governo como Ministro da Cultura?
- (gargalhadas)...Ainda que não me acredite...conheço uma mulher que todos a tem como ....inteligente, capaz e com muita "garra". Seu nome é Rocío L' Amar...A conhece?
BIOGRAFIA
Margot del Castillo, poeta e pintora Mulchenina, publica pela primeira vez sob os auspícios do Instituto Educacional Antumapu, o livro "CHAMANA"...Participou de três Feiras Nacionais do Livro. Organizou "Culturas na rua".
Realizou leituras em colégios da oitava Região. Tem dirigido oficinas, apresentações e leituras na cidade de Los Angeles e Concepción. Participou ativamente do Segundo Encontro de Escritores em Tarija Bolivia, sendo nomeada Embaixadora Universal da Cultura pela União Latino- Americana de escritores (ULATE), e pela União de Escritores e Artistas de Tarija. Atualmente preside o Centro Cultural Antumapu na comunidade de Mulchén.
MEU DIREITO DE SER CHILENA
Tento falar do direito
ancestral da terra,
do direito a preservar
a cultura...
o idioma...
a dignidade...
Dos direitos submetidos...
Dos direitos...
Direitos.
E de outros não tão direitos...
E de tanto e tanto escutar da luta,
Sinto-me discriminada...
Irei à greve
porque sou loiro,
porque meus avós
deixaram o suor e o sangue
nesta distante terra...
porque esqueceram até o idioma,
desgarrando as raízes
com suas costas curvadas
no Éden prometido...
E a princesa não quis a meu filho
dos olhos azuis
(Eu sim queria)
Me queima a palavra "huinca"
me pesa o coração...
e danço "choique purrum..."
e celebro o "huetripantu"
porque sou chilena...
nascida com a canela
aromatizada por araucárias...
batizada no rio...
irmãos no ventre
fértil da "pachamama"...
em três idiomas...
Que importa?
Se brota sangue vermelho
sem discriminar peles
morenas e brancas...
E nos dói por igual
a morte e a vida.
Direitos...
Quero o direito de igualdade
A crescer entre culturas
díspares e maravilhosas
porque mãe, terra, homem
significam o mesmo
não importa em que idioma se digam.
 
EU CONFESSO
Eu confesso diante do homem todo poderoso que tenho pecado muito
em pensamento, palavra, obra e omissão
Por minha culpa, minha culpa, minha grande culpa de ser mulher.
Por isso rogo a vocês,irmãos,
que intercedam por mim
até obter a sua aprovação.
E prometo diante deles, criadores das igrejas e a sociedade:
Nunca mais pensar.
Aceitar minha condição de SER discriminado.
Não optar por cargos públicos que comprometam seus domínios.
Fortalecer, gerar e formar seres à sua imagem e semelhança.
Atender com diligência e humildade as suas necessidades e desejos.
Obedecer, calar e negar-me agradecida ao direito de existir.
E confesso diante do homem todo poderoso
que seguirei pecando muito
em pensamento, palavra, obra e omissão.
Por minha culpa, minha culpa, minha grande culpa de ser mulher.
Por isso rogo às Marias sempre virgens,
às Madalenas arrependidas,
às mulheres de Lot convertidas em sal,
às meretrices, às Joanas D'Arc,
condenadas e exaltadas pelo homem em sua história
que nos unamos em protesto, negando-nos a ser
Endeusadas...
Castigadas...
Repudiadas…
Esquecidas...
Condenadas...
Silenciadas...
Não há culpa...Não há culpa...Sou mulher.
OLHOS AZUIS
Rosa, onde estás? Não aguento mais este gringo cuzão! Um dia destes vou matá-lo! ...Um cacarejo de galinhas respondia a cada grito...Detrás da cozinha a mulher se fazia de conta....(não vejo...não vejo.)... sabia da raiva do homem, da força de seus punhos...Temerosa cobriu o rosto com as mãos...E vocês, o que estão olhando? Acaso gostam? Claro! Se está quente ao meu gosto! Crês que eu não saiba?
Fechou os olhos... esperando...Um suspiro lhe saiu do peito ao escutar o estrondo...
Olhou pela ventanilha aliviada...O céu era azul... como os olhinhos do padrão.
MADRE
Mamãe, quero ir à minha casa...Quero minha casa! Mamãe!... Apertando-o contra seu peito,...ela sussurra baixinho...filhinho, o papai perdeu a chave, não podemos entrar...amanhã, amanhã voltaremos...não chores mais...entre soluços o vence o sono. Oculta a noite os hematomas...as lágrimas se fazem berço.
CAFÉ
Assim o sentiu, amargo, como uma patada mais... de tantas... e ficou na angústia, sem argumentos, afundando sombras.
Tens certeza? ...O silêncio ouvia a conversa repetida, a acidez de batimentos, o desespero. Certeza? O sabia havia meses... Primeiro soprava, uma agitação inconfundível...e o calendário negou sangue e as aureolas dos pés escureceram...Certeza? Certamente que não estava...É meu? Não, não é teu filho da puta, - murmurou no café enquanto se esfriava-...É do vizinho, de teu melhor amigo, dos milhares que separaram as suas pernas, dos que gozaram nelas, enquanto dormias de cócoras em sua cama...Que farás? ...Silenciosa tomou a xícara e sorveu o resto de café...Lá fora chovia...
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Rocío L' Amar é poeta, 
ativista cultural, jornalista, escritora, 
correspondente e colaboradora de  PALAVRA FIANDEIRA no Chile
 Tradução do Espanhol: MARCIANO VASQUES
MARCIANO VASQUES é escritor e fundador de PALAVRA FIANDEIRA

terça-feira, 18 de maio de 2010

PALAVRA FIANDEIRA - 29


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PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA
ANO 1 - Nº 29 - 18/05/2010

 NESTE NÚMERO:
ALBERTO PEREIRA
Entrevistado por
Carmen Ezequiel
PORTUGAL
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SOMBRAS COMUNS
Entrevista a Alberto Pereira

Por Carmen Ezequiel
em exclusivo para o Palavra Fiandeira





Escreve para se evaporar no nevoeiro perpétuo do quotidiano”
Alberto Pereira

Por cá, há o costume de se dizer que “viver não custa, o que custa é saber viver”.
Nesta edição de Sombras Comuns, vivemos intensamente as palavras de Alberto Pereira. Inebriamo-nos com o som da alma deste Ser excepcional e, quis a vida, um poeta que se fez.
Aqui, entrevistamos Alberto Pereira que sabe viver um dia de cada vez, pois “todas as vivências são significativas” e que, como ele próprio diz, “é uma ilha como todos os homens”.
Natural da cidade das Sete Colinas (Lisboa), residente na freguesia de Parede, e com 39 anos tem já um vasto curriculum nestas andanças da poesia (e, não só).
Para ele, “em termos literários, Herberto Helder, tornou-se marcante porque desabitou os limites que me tinham encontrado até então. Foi como se as palavras pudessem alvejar a realidade e esta gostasse de desfalecer no imaginário.
A obscuridade como caminho, o caos a deflagrar nas metáforas, o transe a forjar a perfeição. Reportório de enigmas onde há sempre um grito suspenso no pensamento, um precipício a que queremos pertencer. Foi este perseguir da utopia e a não hesitação do encanto, que abriu um novo diálogo nas minhas mãos. Herberto Helder é o poeta que me apresentou a mim próprio”.
E, porque toda a sua entrevista é um poema alargado, aqui vos apresento Alberto Pereira, um “encantador de ilusões”.

“Sempre gostei de desaguar ideias no papel”
“Continuo a acreditar que são os pequenos gestos que nos fazem o destino”
Alberto Pereira


Carmen Ezequiel - Define-te em 3 linhas. Quem é Alberto Pereira?

Alberto Pereira - Alberto Pereira é uma ilha como todos os homens.
Nasceu em 1970 em Lisboa. É licenciado em Enfermagem. Escreve para não se evaporar no nevoeiro perpétuo do quotidiano. De quando em vez, aluga quartos na memória para regressar à infância. Gosta do silêncio e de caminhar fora do destino. Vagueia para se cumprir.



CE - Poeta, radiotelegrafista, enfermeiro, marinheiro, praticante de Tai Chi, Shiatsu, Aikido e Meditação; que mais se pode esperar de Alberto Pereira? O que pesa mais ou é mais relevante para o ser?

AP - Com todo o respeito, não se deve esperar nada. Esperar alguma coisa é um convite para que ela não se concretize. Por isso, resta-nos ficar atentos para ver o que surge, porque para mim também é uma incógnita.
Em relação à importância do que faço, aí tenho uma certeza, neste momento a escrita é o que mais pesa.



CE - Como enfermeiro de um navio de guerra, em além mundo, viajando por “mares outrora navegados”; a escrita foi um escape ou algo que já existia? Como começou esta “forma de fazer transfusões de eternidade”?

AP - A escrita é sempre um escape para nos reinventarmos. Comecei a escrever de forma mais intensa quando saí da Marinha. Sempre gostei de desaguar ideias no papel; frases, pequenos textos, poemas. Mas só quando a vida se gastou na minha mãe, senti a necessidade de fazer das sílabas, alento. Algo me procurava. Uma inquietação que queria salvar-me da noite em que se tinham transformado as horas. Inesperadamente, uma doente que se encontrava internada no serviço onde eu trabalhava, salvou-me. Um acto que me trouxe até aqui. Continuo a acreditar que são os pequenos gestos que nos fazem o destino. Coisas que se atravessam em nós sem sabermos porque, e que significam mais que aquilo que conseguimos ver.
A doente  a que me referi era tradutora e presenteou-me com um livro por si revisto. Atrás do livro, surgiu o impulso de lhe dizer que escrevia. A sua boca desenhou de imediato o que iria encontrar no futuro. A dificuldade de publicar poesia. Aconselhou-me a escrever, romance. Saí dali e quando cheguei a casa, as mãos deram-me ordem para começar. Fi-lo meses a fio, com a inocência que escrevia uma obra-prima, a mesma que mais tarde me ofereceria derrotas. Depois entendi que não estava bem escrita. Era o início de uma batalha à qual não renunciei. O tempo foi-me trazendo evidências. O silêncio explicava lentamente uma solidão que enchia. Mas faltava ainda uma vírgula para as coisas acontecerem em definitivo. Conheci então o poeta Pedro Sena-Lino que me trouxe o rumo. E assim começaram as transfusões de eternidade. Com elas a anemia da ilusão morreu e surgiu o livro “O áspero hálito do amanhã”.
(para adquirir o livro visite: www.ediumeditores.org)


CE - Fala-nos um pouco do teu percurso literário? Como começou e como vês a literatura em Portugal?

AP - O meu percurso literário iniciou-se da forma que referi anteriormente. O que aconteceu depois, foi fruto da consolidação de conhecimentos que adquiri na “Companhia do Eu”, a escola de escrita criativa que frequento há três anos. Tive também a sorte de o editor José Castelo Branco, da Edium Editores, me dar oportunidade de publicar. As pequenas editoras têm mais importância do que aquela que lhes é atribuída. Não estamos a falar das que publicam de tudo a troco de dinheiro, mas daquelas que apesar de precisarem de sobreviver ainda tem critérios de seleção, embora não os mesmos que as grandes editoras, porque se assim fosse, sucumbiam de imediato. Quanto à literatura em Portugal, penso que não se pode opinar sobre o seu futuro, porque vivemos uma época conturbada, com muita agitação política e social, e não havendo dinheiro, a cultura é a primeira a quem arrancam a pele.

 (Paulo Fonseca, Firmino Mendes, Alberto Pereira, Jorge Castelo Branco)

Penso que em Portugal se edita muito, logo também se escreve muito”
Alberto Pereira

CE - Já com algumas obras publicadas, participação em colectâneas e concursos; que dificuldades sentiste. Quais as dificuldades que se sentem para quem quer publicar? Quais “os obscuros labirintos que rodeiam os meandros da edição”?

AP - Em primeiro lugar, escrever é muito trabalhoso. Fazer um esboço do que se pretende não é difícil. O que leva à exaustão, são as inúmeras correções a que temos que submeter o texto. Debelar bloqueios, procurar erros, aceitar as palavras que nos chamam, formatar vezes sem conta, esta sim, é a árdua tarefa da escrita.
Quanto às obras publicadas, participei em algumas coletâneas de conto e poesia, mas individualmente o livro “O áspero hálito do amanhã”, é o único registro até ao momento. Chegar a uma editora é difícil, e a uma grande editora quase impossível. Existem muitas condicionantes. A qualidade é importante, mas não determinante. São esses os obscuros labirintos que rodeiam os meandros da edição.
Em relação aos prêmios, têm peso porque fazem chegar mais pessoas ao que escrevemos. De todos eles, o que mais me marcou, foi o 3º lugar no Prêmio Sepé Tiaraju de Poesia Ibero-Americana, no qual participaram pessoas de 26 países. Os prêmios são um estímulo, numa jornada que tem mais derrotas à nossa espera que vitórias. O que nos vai segurando é o prazer de criar, de lançar para o mundo novas personagens e frases que perduram. É esta a eternidade de quem escreve, deixar uma voz que se prolonga para lá da sua existência.

CE - Em Portugal edita-se pouco? Ou, escreve-se pouco? Ou, ainda, lê-se pouco? Nós, que fomos moldados por Camões, Pessoa, Florbela, Cesário, e outros tantos; onde se encaixa a poesia na sociedade atual? E, nos jovens de hoje?

AP - Pelo contrário, penso que em Portugal se edita muito, logo também se escreve muito. Falta perceber se o que se edita, não é literatura que chega e parte num ápice, porque lhe falta algo. Relativamente à poesia, abre-se hoje um problema de visibilidade; o que eu chamo, tempo do encanto esquecido.
Na sociedade atual, a poesia deve ser vista como uma hipótese de transcendência, algo que está acima da agonia do quotidiano. Cada vez mais os dias copiam os homens que gostam de decapitar as feridas. Talvez esta seja uma das razões porque vende pouco. As pessoas procuram literatura, que não se some ao que já sofrem, e a poesia não serve essa exigência. É um lugar onde as memórias nunca estão fora de validade. Os abismos não morrem, apenas aprendem a clarear com o tempo. Não entender que a escuridão é muitas vezes um convite ao amanhecer, é um erro. Os jovens de hoje, na sua maioria, não gostam da palavra poética. Esta é vendida como uma arte chata, que se pode encontrar no canto pobre das livrarias. Nunca os poetas foram tão silenciados nos grandes espaços livreiros. A poesia sobrevive, porque ainda existem alguns que teimam em acontecer no interior de si próprios.

CE - Achas que as novas tecnologias, como a internet, promovem a literatura e a poesia? Ou, se pelo contrário, pode-se correr o risco de a banalizar e perderem-se os direitos de autor?

AP - A internet ao serviço da literatura é primordial nos dias de hoje. O seu papel na divulgação das letras, a rapidez com que leva ao mundo as ideias e a proximidade que cria entre quem escreve e o público é notória. Mas temos que ter presente que apesar de ser um expoente na democracia do pensamento, local de elevação dos sonhos e montra de talentos, é também um crematório de ilusões. Escrever é uma tarefa difícil que exige sacrifício, e neste prisma penso que a internet por vezes banaliza este conceito.

“Decepar a ilusão é viver morto”
Alberto Pereira

CE - Onde se cruza a poesia e a enfermagem. É a poesia que te faz ser melhor enfermeiro, ou é a enfermagem que te faz ser melhor poeta? É a rigidez e o código secular da Marinha que te transformaram no que és hoje, ou são as filosofias orientais que te fizeram o ser?

AP - O que nos faz o ser, é tudo o que se cruza com os nossos dias. Todas as vivências são significativas, embora umas mais marcantes que outras.
A Marinha foi um expoente porque me mostrou parte do mundo. O mar é uma meditação para quem o quiser ver para lá das ondas. Umas vezes tempestuoso, outras, metido numa serenidade que comove. Foi nele que aprendi a valorizar a ausência, o silêncio, a melancolia, a beleza desmedida. Foi nele que aprendi a deixar mergulhar aves nos olhos, a colecionar crepúsculos, a trazer tempestades para casa. Quando as horas de vazio me embalavam nas marés, deixava entrar livros pelo coração e guardava mundos que hoje sei que existem, porque também os tento criar. Nesta medida, a Marinha moldou-me o destino.
Quanto ao ponto em que convergem, enfermagem e poesia, sem dúvida, na dor. Sendo assim, poeta e enfermeiro, ajudam-se mutuamente. É certo, que trabalhar num local onde o sofrimento grita nos homens grande parte do tempo, aprimora os precipícios. O que se escreve, é reflexo do que nos encontra. Por isso, acredito que todos os livros têm experiências biográficas dos seus autores, mesmo que bem camufladas.

CE - És um “encantador de ilusões que vive nas entranhas da fantasia” porque acreditas que, como diz Vladimir Nabokov “a nossa existência não é mais do que um curto-circuito de luz entre duas eternidades de escuridão”?

AP - Vimos da noite e para ela regressamos. O dia, a luz, são o paraíso possível.
O destino é um curto-circuito que é preciso aprender a prolongar. Para sermos inteiros, temos que elevar em nós as coisas simples; não a grandiosidade que sequiosamente nos oferece um deserto.
António Lobo Antunes, disse há algum tempo atrás numa entrevista - “A morte é uma puta”.
Nada mais certo. Não há um corpo que ela não procure. Tem para todos, a ditadura de um matrimônio. Ninguém escapa à terra. Em todos os homens se escreve o mesmo romance; a escuridão definitiva.


25 de Abril

O dia em que o cheiro fétido da ditadura
sucumbiu ao aroma perene dos cravos.

Não gostaria de ver morrer a liberdade
nas mãos da incongruência,
pois às vezes fazemos dela
uma luxúria desprovida de senso
onde tudo é permitido.
Alberto Pereira

CE - O teu poema 25 de Abril é uma analogia à realidade dos dias de hoje. Que “mãos da incongruência” são essas? São também elas que prendem a poesia de evoluir?

AP - Na liberdade também há regras. Hoje difunde-se a ideia que nada é incongruente. Os homens manejam a liberdade sem cuidado. Todos os sorrisos contêm um fio de neblina, que se pode levantar a qualquer instante. Para isso, basta que o nosso brilho seja analfabeto. A liberdade deve ser, um eu que sabe existir nos outros, e não uma cegueira que imagina ser o mundo.
Quanto à poesia, nada a prende. Os homens é que podem não entender que ela evolui. Mas isso é uma obscuridade que diz respeito a cada um.

CE - Corremos o risco de que essa liberdade seja “uma luxúria desprovida de senso onde tudo é permitido”, mas ao mesmo tempo aguardamos “na posição fetal da fantasia uma alma nômada grávida de utopia”? Que alma é essa? Porquê nômada?

AP - Somos luzes inertes acesas de trevas, mas lá no fundo, naquele canto do corpo que guarda o que não ousamos dizer aos outros, vive a utopia. Gastamos a vida a ter vergonha de ser, o que fomos há muito tempo. A idade em que o pensamento era nômada e nos deixava acontecer.
Tudo isto, se define bem, com uma magistral frase de Herberto Helder;
Tenho uma criança perdida em todos os lugares”.

CE - Em 17 de Abril de 2008 nasceu o blogue “Murmúrios da Utopia” (http://www.murmuriosdautopia.blogspot.com), um espaço criado para “partilhar inquietações, impossíveis e intemporalidades com outros e comigo próprio”. Que inquietações são essas que te levaram a essa necessidade ou, vontade?

AP - Dentro de cada homem, vivem muitos homens. Chega uma época em que ou os absolvemos da prisão perpétua, ou eles, nos obrigam a um abrupto embrutecer. Foi isso que quis evitar. Decepar a ilusão é viver morto.
Escolhi ser um impossível que acontece.

CE - “Bairro de Lata”, um poema teu em prosa, descreve-nos uma das tuas viagens e vivências ao submundo da realidade, ou é pura imaginação? Que local é esse?

AP - Bairro de lata é realidade. Simplesmente o lugar do meu crescer. Foi essa a morada do homem que um dia quer ser poeta. Digo, quer ser, porque ainda falta caminho para que o seja.

CE - “O Poeta é um mundo insubornável que paga em melancolia a arquitetura ardente da transgressão”
Fala-nos desta expressão.

AP - O poeta tenta estar acima do invisível. É um fantasista a quem nenhuma realidade consegue vender o absoluto. Mas para atingir o fascínio, tem que venerar sombras, idolatrar precipícios, cortejar tristezas, adular silêncios.
A sua transgressão é saber acontecer no vazio.

CE - Que noites há que “de tão simples, são eternidade”?

AP - As noites que aqui refiro, são as adversidades que nos vão encontrando. É a escuridão que tantas vezes nos aflige, que nos faz andar para a frente. Um nevoeiro que chega para nos resplandecer.
A manhã precisa da noite. Os homens precisam das feridas. É essa a placenta da eternidade.

 (João Aguardela)

CE - A subjetividade que transmites nos textos em poesia contrasta com o realismo dos contos em prosa. O conto “A última fotografia” é dedicado a João Aguardela. Fala-nos um pouco da pessoa, da experiência que vivenciaste e do que te levou a escrevê-lo.

AP - É preciso compreender que um poema se pode muscular com a metáfora, mas que um conto exageradamente metafórico, se perde do seu objetivo. O leitor sente-se subjugado às frases e não ao enredo, e isso leva-o ao cansaço. Uma das grandes dificuldades de quem escreve poesia, é abandonar a obsessão pelo encanto da palavra. Tive essa dificuldade, e há alturas que ela regressa sem eu perceber porquê. Tento resistir a esse vício.
Quanto ao conto “A última fotografia”, surgiu pela necessidade de homenagear o João Aguardela; um músico português que não conheci no palco, mas sim, numa cama de hospital. Recordo com saudade as conversas que tínhamos sobre literatura. João Aguardela foi líder e fundador dos Sitiados. Posteriormente esteve envolvido em projectos como Megafone, Linha da Frente e A Naifa, numa tentativa constante de combinar a música tradicional portuguesa, com a sonoridade pop e rock. Nesta linha da inovação fica também ligado aos poetas. Rui Lage, José Luís Peixoto, Pedro Sena-Lino, Adília Lopes, foram alguns dos nomes que viram as suas palavras ditas por A Naifa, o derradeiro projecto em que participou.
São estes cruzamentos da vida que a tornam fascinante. Embora nunca tenha convivido com o João fora desse mundo de dor que é um hospital, cresceu em mim uma necessidade de fazer algo por alguém que a doença calou prematuramente. Porque o tempo não lhe permitiu musicar um poema meu, como dizia, fiz-lhe um conto, para que o esquecimento não o encontre. Só isso.
CE - Escolhe um dos teus poemas, aquele que maior prazer te deu ou que te tocou mais e fala-nos dele.

BAIRRO DE LATA

No fim de um estreito carreiro desembarca um mundo perdido.
Uma floresta de tábuas eriçadas que se espreguiçam na miséria, dão abrigo aos homens mudos de sonhos.
A arquitectura desordenada dos telhados de zinco merenda a madeira nua que treme de podridão. Em cima deles, um sem número de inutilidades; pneus, tijolos e lixo reciclado pelas mentes que necessitam de guardar alguma coisa para enganar a desilusão.
Não se ouvem pássaros, apenas gritos e rumores das mulheres que dissecam cada pormenor da vida alheia. Estas não usam cremes, os seus cheiros são meteorológicos, pois o pouco dinheiro que lhes resta serve para saciar a fome à realidade.
As crianças correm, são “livres”, embora habituadas a sentir o álcool enfurecer as mãos dos pais sem razão plausível.
Joga-se à bola, ao berlinde e às escondidas. Realizam-se os jogos olímpicos várias vezes por mês, com prêmios de cortiça e taças feitas com garrafas de óleo, cabos de vassoura e pratas retiradas dos maços de tabaco já consumidos.
Os homens embriagam os dias de esquecimento, os filhos engarrafam a infância na revolta.
Aqui abrem-se as portas à memória.
O tempo acende o sono dos sorrisos e a cada dia que passa nascem ilhas.


AP - Foi este o poema que mais prazer me deu escrever. Tudo o que existe nele aconteceu. O carreiro estreito. O lixo nos telhados. As mulheres a vasculharem a vida alheia. Os homens a beberem a miséria nas tabernas. As crianças espancadas quando o álcool levantava a voz. Mas o que recordo com saudade, são os jogos olímpicos em que participei nesse tempo. Poucas vezes na vida, me comovi tanto, como quando recebia aquelas taças, feitas com garrafas de óleo, cabos de vassoura e pratas retiradas dos maços de tabaco já consumidos. É desse período que trago uma certeza; somos apenas uma ilha cercada pelo espanto, um lugar onde se enlouquece sempre.
CE - Queres deixar alguma mensagem para o leitor do Palavra Fiandeira?

AP - Porque uma entrevista se faz de palavras, e a vida são vocábulos que nos emprestam luz e escuridão, deixo-vos um pequeno texto de Pablo Neruda, antes de terminar.

Persigo algumas palavras… São tão belas que quero pô-las a todas no meu poema… Agarro-as em voo, quando andam a adejar, e caço-as, limpo-as descasco-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas… E então revolvo-as, agito-as, bebo-as, trago-as, trituro-as, alindo-as, liberto-as… Deixo-as como estalactites no meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes das ondas… Tudo está nas palavras.”

Muito obrigado a todos os leitores da Palavra Fiandeira por construírem este espaço de cultura.


Esta foi mais uma entrevista onde se descobre a essência do ser humano, que tem tantas qualidades, mas por vezes, esquecidas nos recônditos da timidez. Enaltecemo-la aqui com Alberto Pereira, cuja “conversa” foi um mimo para mim. Agradeço a forma como vês o mundo e como o embelezas com as palavras.
Aqui, fala-se de tudo e de nada.
De tudo o que somos.
De nada que ninguém é.

17 de Maio de 2010
Carmen Ezequiel

Curriculum Literário de Alberto Pereira

Obras publicadas:
- O áspero hálito do amanhã
Participação nos Livros:
- Intemporal (conto & poesia)
- Poiesis XVI (antologia de poesia e prosa poética)
- Poemas Sem Fronteiras (colectânea de poesia)
- Bicicletas para memórias & invenções IV e V (colectânea de contos)
- Serenidades (colectânea de poesia)
- Fotografias (colectânea de contos)
Prémios:
- 1º Prêmio do Concurso de Poesia “Ora, vejamos” em 2008
- 1º Prêmio do Concurso de Conto “Ora, vejamos” em 2009
- 1º Prêmio no Concurso de Poesia da ACAT.
- 2º Prêmio do Concurso de Poesia “Ora, vejamos” 2009.
- 3º Lugar no Prêmio Sepé Tiaraju de Poesia Ibero-Americana, entre as 3027 obras inscritas de 26 países.
- Menção Honrosa no Prêmio de Poesia, “O Bacalhau”.
- Menção Honrosa nos XII Jogos Florais de Poesia de Monforte.

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CARMEN EZEQUIEL

Carmen Ezequiel: poeta, articulista, ativista cultural, 
é correspondente e colaboradora de
PALAVRA FIANDEIRA, em Portugal.


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