EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

PALAVRA FIANDEIRA 7





 PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA
ANO 1 - Nº 7 - 31/DEZEMBRO/2009



 MOCHILEIROS PELO MUNDO
 NESTA EDIÇÃO: 
ROCIO L`AMAR ENTREVISTA
JUAN TORRES GIMÉNEZ



 Rocio L`Amar é correspondente de PALAVRA FIANDEIRA no Chile.

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PALAVRA FIANDEIRA

Rocío L´Amar - Chile - JUAN TORRES JIMÉNEZ


Juan Torres Jiménez - às vezes -  parece - me filho da ira existencial, e não estou parafraseando a Dámaso Alonso, nem reproduzindo a introdução à sua obra, na qual indaga em uma poesia desarraigada. Cito: "a poesia não é senão um dos mais eficazes e rápidos modos que o homem possui para erguer-se do contingente ao absoluto, senão a (des)motivação do trabalho poético que marca a sua criação literária, na insistência do fenômeno linguístico como forma escrita, em seu standing, em sua concretude. Estética. Impacto social. Seu humor particular, que reflete um desencanto evidente. Seu desabafo, que a escoriação / abrasão de onde se nutre e prospera sua obra poética.

Esta minha aproximação não é uma visão sintética, um acaso, um talvez, senão vai acompanhada de um processo de evolução desde aquela primeira vez em que Juan Torres Jiménez ingressou nas oficinas de literatura que ministrei nos anos 90 em Lota, Chile, até culminar numa amizade, de forma e fundo, como se contemplam os bons acontecimentos.

Tanto que acredito ser interessante oferecer ao leitor/internauta uma perspectiva ou introdução geral do poeta - e sua obra - num grande risco, obviamente - para conhecermos as suas considerações confeccionado este corpus neste microespaço que ressalta o papel transcendental, nevrálgico, da liberdade individual e a diversidade de opiniões. Por que cada ser humano elege o que conforma a sua própria natureza, segundo Jean Paul Sartre, inclusive a negação a eleger implica já uma eleição. O convite está feito, a quem quiser aceitar o risco e a responsabilidade de seguir seu compromisso onde quer que este leve a Juan Torres Jiménez.

Pedala em sua bicicleta a pós - modernidade como excursionista sem bússola para descobrir-se. Esta velocidade, esta híbrida voz, eufórica às vezes, essas mudanças de pauta, esta macro-estética vanguardista que está criando novos conceitos de linguagem social, forjando estilos do não estilo, entrando no joguinho da oferta e procura numa sociedade legitimada com licença para escrever a incipientes exploradores que encontramos na Internet, poderia acarretar seus próprios perigos.

De frente para a ventania. Coliseu e diversão. Conjunto de exercícios ou ginástica e figurinhas literárias que desejam ser parte da memória histórica, ou parte somente do presente, do agora, e, sem lugar à dúvidas - estão vivenciando seu instante.

Por que subentendido é que as redes são heterogêneas e que a poesia abre portas às linguagens estranhas ou familiares, ali, onde somente existia/existe o vazio. Um vazio editorial.

Qualquer ingresso será útil, será idôneo, servirá para esses fogos de artifícios em poesia?
A este tema convidamos a Juan Torres Jiménez.


Significa algo para você que aplaudamos uma poesia que coopera - como disse um colombiano - com o crescimento do lixo cultural ou é uma especulação, uma grande variedade do mesmo com sua habitual explosão?

Inicialmente, não saberia dizer se me incluo em aplaudir uma poesia com essas características, por que, para ser sincero, não aplaudo muitas coisas atualmente, porém se é um feito, como fluxo poético está instalando, me parece talvez, porque não?, até interessante no sentido que fala de uma simbologia que reflete um estágio comum a muitos. Ou a uma minoria, não sei. Pessoalmente, não me interessa demonizar a dessacralização ou a banalização da poesia, ao contrário, me agrada, de certo modo. Ainda que aquele que tenha faro, vá a encontrar sempre a boa literatura.

Qual a sua opinião sobre a poesia light, como enfeite artificial, tecno-imaginativo, exibicionista e bajuladora, criada pelos internautas? Poderia a poesia perder sua capacidade de sedução e encanto, seu pequeno genes enigmático e linguístico?


Inegavelmente, a Web proporciona um tráfego ilimitado de informações e, o mais revolucionário ainda: é que qualquer um pode ter acesso a ela. E, para o tema ao qual me convoca, a poesia: publicar poemas, passando completamente por alto o rumo,  outrora indispensável, que no Chile, para meu gosto, era e é bastante calamitoso, no que a edição de poemas em formato de papel se refere.
Entretanto, convida à minha atenção a conotação restrita a sua pergunta ao termo ciberpoeta, como subcategoria, como uma nova infraespécie, talvez, que transita sonolenta ainda sob pseudos canônes que bem poderiam representar uma alternativa de categorização em si mesma, a mim me parece que tem mais o caráter de consequência em termos da globalização de informação e da visceral necessidade humana de se comunicar.
E logo me vem à memória, a propósito do tema,o projeto YP Poetry, baseado na geração de poesia a partir da busca em tempo real de material textual na rede. E onde robôs, os YP bots, ou máquinas poetas compostas por um computador conectado à Internet, um monitor e um vivavoz convertem os textos encontrados em sons e imagens pré-gravados de uma boca humana recitando fonemas. Isto para mim é ciber poesia, e nem por isso me deixa de parecer brutal e ao mesmo tempo maravilhosa. Creio que o experimento é a saída, se é que existe saída.
Ainda que a poesia light não signifique para mim absolutamente nada, por que para mim, a poesia, em si mesma seja nada, eu não escrevo poemas partindo de pressupostos, de cobiças. A poesia, como afirmo em um de meus textos, "é um vômito celeste", e esse vômito é o vazio geral de tudo. A anarquia metafísica por excelência. O assassinato de todos os deuses. Que há de perder o vazio então? Parecerá por acaso o estado natural e absoluto do nada? Existem cigarros light, porém, nem por isso eu sempre os fumo. Uns poeminhas mais, uns poeminhas menos, que mais dá?

Que acontecerá com a poesia do silêncio, do leve atrito dialogante, o taxativo da palavra?

- Nada. Que haveria de acontecer? A grande virgem ainda nem foi deflorada. O diálogo dos fantasmas aos fantasmas pertencem.

Ser poeta, viver em poeta, pensar e sonhar em poesia, viver em poesia, assumir sua vivência, resgatar o que escapa, os códigos da expressão urbana, as leis universais. Poesia do e no tempo, poeta da luz, das sombras, a evocação e o imaginário, polifonias multiestéticas... Há algum outro estalo
simbólico que você agregaria a essas expressões, e que passam pelo poeta e a poesia concreta?

Meus poemas.




Acataria você, Juan Torres Jimenez, em sintonia com o É, sujeito criador, refletir sobre "Os poetas malditos"?

Causa-me um pouco de aborrecimento refletir, no rigor acadêmico que isso implica (caso tenha sido essa a intenção da pergunta) acerca dos "poetas malditos", ainda que, em geral, atualmente, a poesia me enfastie bastante, porém como gosto de aborrecer-me:a escrevo, para ver se resulta numa delas algo que me tire de uma vez por todas do aborrecimento. Porém, como fazer o exercício se trata, começarei por efetuar uma aclaração semântica: os poetas malditos não existem, isso é uma invenção. Existem os poetas de culhões grandes, o que é diferente. Nem vamos falar de Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Villón, Artaud, que sei eu...isso já nos ensinam na escola. Entretanto, existem, a mim me parece, um par de exemplos monumentais de poetas de culhões grandes : os chilenos Teófilo Cid, JorgeTellier e o espanhol Leopoldo Maria Panero (para relacionar alguns) no sentido existencial. Claro está, que é ao que me refiro, por que há de se ter saco para se viver como viveram , ou melhor dizendo, desfizeram suas vidas. Por isso, a reflexão que persigo, com esses exemplos, tem relação com a congruência do discurso propositivo da poesia que escreveram e a vida que, como unidades sociais, tiveram e temos, queiramos ou não, todos que viver. Esse ponto de encarnação, de fusão quase satânica, entre o imaginário poético e a vida real. A mistura donde se cruzam anverso e reverso voltando-se um só é a meu caprichoso parecer a antípoda a qual, por amor, todos os que escrevem deveriam invocar.

BIOGRAFIA

Juan Torres Jiménez (1976, Lota, VIII região, Chile), com licenciatura em Serviço Social pela Universidade de Concepción Integrou as oficinas literárias da Corporação Cultural Balmaceda 1215. Organiza múltiplas leituras e performances poéticas em Lota e Concepción. Em 2002, cria e dirige a revista lieterária Inxinerarte. Um ano mais tarde, publica na coleção: Poesia Jovem do Chile. Enquanto que em 2005 o faz na revista de poesia Trilce. Obtendo , em 2006, o segundo lugar no Primeiro Concurso Regional de Poesia Antumapu Mulchén 2006 convocado pelo Conselho Nacional da Leitura e o Instituto Antumapu. Em 2007, transfere-se para viver na Comuna de Cañete, onde publica "AS decapitações de Madona", uma publicação alternativa de poesia. No ano seguinte, colabora com alguns textos no projeto Girapoema, onde divulga uma poesia. Paralelamente, no ano de 2008, cria em conjunto com múltiplos artistas e profissionais cañetinos, a revista de difusão sociocultural e literária Scandio, que até hoje dirige realizando videoarte, performances, publicações nos formatos digital e  papel.

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A CABEÇA JÁ SEPARADA DO CORPO CONTEMPLA A TUDO DE OUTRA FORMA.



"O médico e disputado Joseph Ignace Guilhotin recomendou , à Assembleia Geral Constituinte em 1789, o uso para execuções em guilhotina - daí o nome - de modo a evitar, segundo sua opinião, ao condenado os inúteis sofrimentos. O primeiro executado com este método foi um bandido apelidado de "Pelletier" em maio de 1792, durante a Revolução Francesa"


A cabeça já separada do corporação
contempla tudo de outra forma
Sem significado algum
Sem palavras
Sem desespero

(Soube Guilhotin ao propor a máquina)

E alcança nele o indizível. E o atravessa.
Porém desde dentro
(tal qual o fez Pelletier desde a bolsa
em que a recolheram sua cabeça recém - cortada)
Desde o sangue mesmo
Depois até nós
quando a chuva cai
desbotando tudo

E eu olho a fumaça do cigarro que se apaga
 e me endemonio.



VISÃO PORNOGRÁFICA DA POESIA

A poesia não busca a beleza
se a come
E cava entretanto
no ar uma vagina
para nela ocultar o impossível

a nudez de algo maior que nos encolhe.

A poesia sangra luz quando a mordes.

E ao final quando está escuro
e tudo morre
és um mosquito sugando-lhe o sangue.
Com o qual
depois escreve este poema

onde cada letra no fundo é uma morte
mais pequena que os homens e seus mortos.
Astros em cachos agonizantes


O poema é um vômito celeste.

JURAMENTO DO HOMEM MODERNO

Eu, herdeiro de Caim e seu santíssimo deserto
Adorador do anticristo verdadeiro
Cajado. Injuriador de astros. Eletrizante macaco.
Juro, consagrar minha vida ao serviço do progresso e da máquina!

Guiar até a luz a humanidade que nos condena.
Juro, cultivar sem moral alguma a avareza
Amar a riqueza sobre todas e cada uma das coisas
pois só nela encontraremos o sossego.
Degolarei com diligência . Farei tudo quanto deva.
Assim, com a mesma força que sustento
em mim esta verdade embriagadora
Juro, emudecer também a qualquer que se oponha
com razão alguma ou sem ela
aos que pensam e trabalham como eu, fiel representante de minha casta

Juro, usar o sabre contra mãe pai irmão esposa filho filha
sem hesitação alguma esvaziar-lhes as entranhas
de modo a glorificar esses magníficos preceitos.
Desde agora não tenho alma. Sou o homem.

Sou a criatura por excelência.


O REQUIÉM DE VAD TEPES

Não vivo de anunciar algo maior que me ocorra


Eu o insiro
em uma lança

(do mesmo modo que Vad Tepes)


E bebo assim o sangue.
Leio o mundo até me esvaziar
Porque como a morte lava o homem
Assim também, lavo a linguagem

E o caixão é a linguagem
O que esqueceu de terminar Deus.
O ruído que em seu lugar nada pronunciou
E que agora com mais raiva investiga
em busca de algo
em mim

A medida
que vai voltando-se aí mais homem
que a soma de todos os homens
E eu mesmo.


Tradução para o Português: MARCIANO VASQUES

domingo, 27 de dezembro de 2009

PALAVRA FIANDEIRA 6

 PALAVRA FIANDEIRA 
REVISTA DE LITERATURA
ANO 1- Nº 6 - 27/DEZEMBRO/2009


NESTA EDIÇÃO:

 CARMEN EZEQUIEL ENTREVISTA
NINO RALEIRAS
Diretamente de Portugal

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SOMBRAS COMUNS
Entrevista a Nino Raleiras

Por Carmen Ezequiel
 Carmen Ezequiel é colaboradora de PALAVRA FIANDEIRA

Por cá, há o costume de se dizer que os “olhos são o espelho da alma”.
Na 2ª edição de Sombras Comuns, entrevistamos a alma de um homem que, como ele refere, adora o seu olhar (pessoalmente, eu também). Um olhar descontraido, mas atento.
Descontraido de Ser humilde.

Atento a todos os pormenores, captando-os nas imagens que recolhe através da lente da sua objectiva, usando a câmara fotográfica como ponte para o que vê e não vê, exprimindo o seu sentir e estar.

Aqui, entrevistamos Nino Raleiras. Nome incomum numa pessoa que cedo sentiu o “bichinho” pela arte da fotografia.
Aqui vos apresento o Nino, uma pessoa comum, como tu e eu.


Esta é uma fotografia que ele próprio designa de “a foto”.
Revela os traços que tem até hoje”, diz. “Foi tirada no local onde tive acesso a muitas máquinas fotográficas antigas, onde primeiro vi uma fotografia ser revelada, onde o “bichinho” começou” – comenta melancólico pelas recordações.

Este era o resultado de “uma paciência inesgotável” que o “fotógrafo que me conhecia desde sempre” tinha para lhe conseguir um sorriso.


Vejamos agora as diferenças. Este é o olhar descontraído, atento e actual do Nino, que nos cativa de imediato, pela sensibilidade que transparece.

Carmen Ezequiel -
Define-te em três linhas.

Nino Raleiras – Defino-me como alguém que adora aprender (seja sobre psiquiatria, desporto ou experiência de vida, o cheiro das cidades e do campo, o riso das crianças e a sabedoria dos mais velhos). Ler e ser levado a vários mundos por uma música.

Intenso em tudo o que me apaixona; seja uma mulher ou uma causa.

Abençoado pela família, amigos e meio ambiente, que me rodeiam.Teimoso e sempre com uma pergunta pronta, seja qual for o assunto.


– Vamos dar a conhecer um pouco da nossa terra lusitana a todos os que lêem PALAVRA FIANDEIRA. Qual a cidade, em Portugal, com a qual mais te identificas e dá-me cinco boas razões para a tua escolha?

– Portugal é um país pequeno, mas recheado de pequenos contrastes.

Lisboa é a cidade mais bonita que conheço, com as suas colinas, gentes e diferentes cheiros.

Tem um local que transborda vida: o Bairro Alto, com as suas lojas alternativas durante o dia e, os seus inúmeros bares, que tornam qualquer noite pequena.

A sua incomparável luz torna-se ainda mais bela quando refletida pelo rio que a banha.

Há uma imagem típica de Lisboa que ninguém que a vive consegue esquecer: o cheiro a castanhas assadas em plena rua nos primeiros dias do Outono.


Existe, no entanto, uma zona de Portugal que me traz a paz de espírito que necessito: o Alentejo e, mais concretamente, a zona que se encontra entre a magnífica e romana cidade de Évora e a raiana cidade de Elvas.

Aí posso encontrar família e amigos.

Provar os melhores pratos e vinhos.

Perder-me naquela planície.

Durante muito tempo não percebi o verdadeiro significado da frase que me diziam quando chegava – “então, quando abalas?”. Pensava que queriam saber quando me ia embora, mas na verdade o que pretendiam era saber quanto tempo podiam estar comigo.


– O que é Menos que Zero? Porque sentiste a necessidade de criar um blogue?

– Há muitos anos que sentia a necessidade de me exprimir para lá das conversas ou dos escritos que fazia em qualquer folha de papel, mas que nunca guardava.
Por outro lado, sempre fui muito discreto e raramente falava sobre mim, somente o essencial, sendo um desconhecido para as pessoas com as quais convivia.

O blogue surgiu como uma tentativa de me abrir ao exterior, de me expor. Não sabia o que esperar, nunca tinha feito nada parecido.



– “Será a cultura dos blogues um instrumento da vaidade?” Acreditas nisso? Que todos os que utilizam este meio para se exprimir fazem-no por vaidade?

– Claro que a vaidade está presente nos blogues. Embora não considere que ela seja o principal motivo para a maior parte dos bloggers do mundo inteiro. A vaidade mostra-se na forma como se apresenta um texto, uma fotografia ou uma música. Nas opiniões que se expressam ou na riqueza das experiências que ali se partilham.

Há quem tenha aderido aos blogues porque a isso é praticamente obrigado. Seja por motivos profissionais ou porque é isso que deles se espera.
Mas, certamente que cada um terá os seus motivos para criar e manter algo que pode tanto ser muito pessoal, como somente uma partilha de informação.



– No teu espaço presenteias-nos com fotografias várias. A fotografia sempre foi uma paixão para ti? A imagem que captas é um reflexo das tuas emoções e estado de espírito? Que outras formas de arte te auxiliam no dia-a-dia?
– A minha formação académica foi em Contabilidade e em Direito e, a expressão através das formas consideradas como “artes” tem surgido gradualmente e com uma maior incidência nos últimos dois anos.

Se na fotografia tento captar um momento que, posso não estar só a ver, mas principalmente a sentir.

Na música experimento a luxúria de ser levado por alguém a um estado de alegria ou tristeza. Na leitura tento, muitas vezes, entrar na cabeça de quem escreve, naquilo que pensa, na fase da vida em que se encontra.
Com a pintura experimento a libertação. A mistura de cores que, talvez só eu entenda, as palavras que tapo e ninguém vê.

Na escrita exponho-me. Chega a ser dolorosa essa exposição, pois abro uma porta que era desconhecida. Sujeito-me a ler opiniões, igualmente cruas e sinceras, que sinto me tornam melhor.


– Tudo isso é um meio para te abstraíres da rotina, ajudar-te a equilibrar a mente e a “manter a coluna vertebral direita”?

– Há muito que optei por viver sem a rotina que nos torna mais um marionete num palco cheio deles.
Procuro informar-me sobre o mundo que nos rodeia. Podendo assim ter a opinião sobre diferentes assuntos e não, tão-somente, seguindo uma corrente que é da maioria. Não aceito que decidam por mim, quando tenho essa possibilidade, assumo-a, muitas vezes com um sorriso, tentando ser o mais justo possível.

É talvez aí, que mais se entenda a minha verticalidade, a tal “coluna vertebral direita”, que mais se vinca quando mantenho a minha posição. Desde que nela acredite, mesmo que isso me traga dissabores ou não cair nas boas graças de alguém. Por aqui também se vê o meu “feitiozinho lixado” que, em algumas situações, já me fez ser a única “ovelha” de cor diferente.



– Também utilizas um pouco da ironia para exprimires as tuas revoltas com as adversidades da vida. Isso faz parte da tua teimosia e “feitiozinho lixado”, como dizes? O que te faz infeliz e perturba emocionalmente?

– A ironia acompanha-me desde sempre. Uso-a muitas vezes. Permite-me expressar opiniões com um sorriso. Não tenho tido grandes adversidades na minha vida. Nem tão pouco me sinto revoltado. Exprimo alguns sentimentos pontuais, que duram pouco, pois é com alegria que vivo e aproveito tudo o que me chega.

O que me entristece, e de certa forma, me perturba emocionalmente são as injustiças sofridas por pessoas que sempre procuraram fazer o bem.

A cegueira que não permite ver para além do que se pretende.



– Gostaria que escolhesses uma das tuas fotografias preferidas e nos dissesses o porquê da escolha.



– Esta é a fotografia que mais gosto. Foi tirada em Gênova, num bairro onde as prostitutas se sentam de dia à porta de casa, aguardando pelos clientes.

Evitam a todo o custo serem fotografadas.

Três delas estão ao fundo e vêem um padre que se dirige para onde elas se encontram e, que emana uma luz muito intensa.

Gosto muito das contrariedades e contrastes que esta foto transmite.

Prostitutas.

Padre.
Bairro escuro num dia cheio de sol.

Um branco celestial num padre negro.


– Perguntaste porque te escolhi para esta entrevista. Eu respondi : “e, porque não!?”. “Se caminhas diariamente pela burocracia, ouvindo 'estórias' e desgraças alheias”, porque não ouvir um pouco da tua “estória”? É disso que trata este espaço: da vida de vidas de pessoas comuns, como tu e eu. Queres deixar alguma mensagem para o leitor do PALAVRA FIANDEIRA?

– O Palavra Fiandeira permitiu-me descobrir pessoas muito interessantes e, com quem, provavelmente, não me iria cruzar. Porque são comuns, porque são discretas na sua beleza. Qualquer homem normal e apaixonado pela vida poderia aqui estar. Coube-me a mim o privilégio.


Pedi ao Nino e, porque ele tem sempre uma questão para qualquer assunto, que terminássemos esta entrevista com uma pergunta feita por ele. Questionando-me sobre o meu poema favorito, partilho convosco um dos muitos que tenho.

De Originis – J. O. Travanca Rêgo (conterrâneo de Vila Boim)




Não nasci do Nada. Mas

De ruínas que aí estavam

- em flor – sementes altas!

Filho da terra sou.
Bebo um sonho de água…

- Serei

a pura poeira inominável
em ruínas mudas sem colunas,

túmulo sem corpo

: história indecifrável?”




E, assim se chega ao final de mais um Sombras Comuns. Agradeço ao Nino pela simplicidade das suas palavras e pela virtual conversa que tivemos.




Aqui, fala-se de tudo e de nada.

De tudo o que somos.

De nada que ninguém é.



Carmen Ezequiel

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

PALAVRA FIANDEIRA 5

PALAVRA FIANDEIRA 

REVISTA DE LITERATURA
ANO 1- Nº 5 - 15/DEZEMBRO/2009


NESTA EDIÇÃO: GLÓRIA KIRINUS


COM OS LEITORES, UMA PROSA QUE É UMA POESIA

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É preciso que a força da poesia invada os corações aflitos. Ela é mesmo uma força, que está além do simples trançar das letras, das rimas, dos rumos e dos muros. Talvez seja apenas a mais delicada forma de se dizer. Aquilo que está nela é ela. PALAVRA FIANDEIRA é também poesia, e vela pelos que embelezam a alma. Nesta edição uma poetisa, uma escritora, uma autora de livros infantis. Ouçamos a sua palavra, vamos nos enredar em sua leveza. Quem sabe ela nos poderá dizer que o mundo pode ser como o menino e a menina querem. Com vocês, PALAVRA FIANDEIRA! Seguindo a sua audaciosa trilha da felicidade.


GLÓRIA KIRINUS



Como tecer Glória Kirinus? Como compreender a sua força poética, mansamente refugiada nas frestas dos afazeres cotidianos? Talvez seja de fato apenas uma observadora, ou esteja a extrair dos cantos e recantos das cidades por onde vagueia, a poesia, aquela que a si catalisa o que é puro e sincero. Ela batiza o mundo com as suas sílabas, escreve para crianças, e tateia ousadas reflexões.

Glória Kirinus é poeta, e tem consciência da sua imensa responsabilidade, por isso transita longe das flores banais.

Consegue estar no olhar da criança, e, dona do aprendizado do cerzir as cicatrizes, também encanta-se com a oralidade infantil, por isso segue com verso e conversa com os pequenos.

É teórica e é prática, e a sua prática reside no poetizar. É assim que responde ao mundo e é assim que demonstra o seu estar. Com a sua palavra fiandeira nos leva ao acalanto dos olhos e nos enriquece.


ENTREVISTA
GLÓRIA KIRINUS
PALAVRA FIANDEIRA
EDIÇÃO 15 DEZEMBRO


1. Quem é Glória Kirinus?


No espaço: um pouco peruana, um pouco brasileira.
No tempo: uma sexagenária distraída que perdeu de vista a folhinha que marca os anos.
Na vida: escritora, leitora, mulher, mãe, avó, filha, irmã, amiga.
No trabalho: formiga e cigarra inventando ofícios todo dia... com alguns títulos acadêmicos para avalizar as ousadias.
No planeta Terra:uma habitante a mais
No céu astrológico: canceriana, com lua dupla e ascendente em aquário.


2. Em um de seus cursos, disse que "Ler, Escrever e Compreender um poema ajuda a respirar melhor". Fale-nos sobre isso.


No momento em que estou finalizando um livro teórico “Sintomas de Poesia na Infância”, onde aproveito a terminologia médica para equilibrá-la com a conduta poética da criança, essa pergunta é bem pertinente. Não vou sozinha nessa percepção da poesia como canal de auto-conhecimento e cura do corpo e da alma. Bachelard me acompanha. É ele quem diz:
toda criação deve superar uma ansiedade. Criar é desatar uma angústia. Deixamos de respirar quando somos convidados a um esforço novo. Há assim uma espécie de asma do trabalho no limiar de toda aprendizagem” (A terra e os devaneios da vontade p. 114).


Não duvido que ler, escrever e compreender um poema ajude não apenas a respirar melhor, como também a viver melhor. Algo de córtex frontal deve ser tocado com a leitura e a escrita. Algo de contaminação feliz deve provocar uma inédita dança celular no corpo e na alma. Algo... Mas quem sou eu para entrar em áreas que apenas adivinho?


3. No curso Lavra- Palavra, revela a sua paixão pelo poético na oralidade infantil. Em que momento da sua vida tal paixão começou a se manifestar?
O curso “Lavra-Palavra” foi meu melhor invento. É por causa dele que conheci muita parte do Brasil. E a cada curso ministrado amplio e ganho aval precioso dos participantes. Não são poucos os que se descobriram poetas com o curso. Eles estão por aí, com suas publicações. E às vezes, alguns brincam de aprendizes e visitam o curso quando o encontram nas suas cidades. Digo, então, não tenho mais nada para ensinar a você. E ficamos cúmplices de um aprendizado que nunca termina.
A oralidade infantil me cativa e surpreende. Numa época da minha vida fui professora do atelier de literatura, das primeiras séries, no colégio Integral de Curitiba. Foi ali que nasceu o “Lavra-Palavra”, movido pela fertilidade poética da oralidade infantil. Além disso, sou mãe de três filhos que já foram crianças e sou avó. Sempre me chamou muito a atenção essa percepção poética do mundo que as crianças demonstram a cada conversa.

4. Uma criatura fiandeira sempre merece o nosso respeito. Quem é a Aranha Castanha, de seu livro "Aranha Castanha e outras tramas"?


A primeira crônica explica. O fato foi real. Constatei uma aranha no meu travesseiro. O espelho me devolveu um terceiro olho na minha testa. Motivo suficiente para desenvolver o texto. Mas como eu sou um pouco castanha e sou fiandeira de palavras, nada impede que divida esta identificação com a aranha castanha, que graças a Deus, não é marrom, do contrário seria mortal. E esta aqui é apenas estranha.


Em suma a “aranha castanha” é uma rendeira que aprendeu as manhas com a Sherazade, com Penélope, com Esther, Aracne, Ariadne, essas mulheres que adoram fiar e desfiar os desafios da vida e do texto. Juntar fios e organizar os mesmos, num acabamento estético é nossa arte. Mas somente nós sabemos dos avessos do pano. Quanto tecido desfeito pela fiandeira exigente. Quanto nó solto ou com arremate firme. O lado direito é o texto final, acabado. É o resultado de muita trama, muito tear que o leitor terá o prazer de ler. 

 


5. Sintomas da poesia, da filosofia, da felicidade. Eis aí coisas extraordinárias. A sua literatura é uma busca da felicidade?


Sintomas de Poesia” é o título de um livro teórico que está no prelo e deve ser publicado em 2010.
A Literatura, entre outras artes é uma contra-indicação contra a morte. O autor se multiplica em outros e de tanto não caber em si é capaz de sentir como Mário de Andrade: eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta, mas quem sabe, um dia, toparei comigo. Só que nenhum criador quer topar com ele mesmo. Daí para de procurar-se entre os trezentos, entre os trezentos e cincoenta ... Como não ser feliz com a companhia e possibilidade do viver com diversos personagens da literatura? Como não descobrir-se neles? E se o desamor te pega de assalto, como não encontrar outro amor que não maltrate ninguém, na leitura de Tomás Antonio Gonzaga, por exemplo? Quem não foi a Marília de Dirceu, ouvindo as palavras bonitas, na leitura do poeta árcade?

Minha literatura permite que as montanhas ou os sapatos conversem. E junto formiga com cigarra (formigarra/cigamiga) e tartaruga com lira (Tartalira). Será esta uma maneira de promover a conciliação de aparentes apostos? De unir as disjunções? Então, talvez escrever seja uma maneira de ser feliz.



6. Seu enredo passa pela Pedagogia Freinet, pode sintetizar ao leitor tal pedagogia, destacando um de seus princípios?


Meu enredo? Olha que você está acreditando mesmo que eu tenho alguma cumplicidade com a “aranha castanha” rsrsrsrsr.
O meu encontro com Célestin Freinet foi um acontecimento na minha vida. Quando aconteceu o encontro internacional de educadores Freinet (RIDEF)em Florianópolis, a diretora da escola onde eu lecionava me pediu que representasse o escola, com minha oficina “lavra-palavra”. É claro, que não aceitei. Eu nem sabia quem era Freinet. Quando levei este argumento, ela me falou muito categórica e serena, ao mesmo tempo: Freinet é você. Levei tamanho susto, porque eu estava viva e nem me imaginava homem. Voltei para casa com uma pilha de livros de Freinet. Me reconheci em muitos momentos. E até agora, muito do que falo em relação a educação, mais tarde confirmo em Freinet.


7. Há um grupo de curitibanos apoiado pela senhora, com estudos e produções baseadas em Heráclito e Bachelard. Está certa a minha afirmação? Conte-nos sobre esse grupo.


Ah, eles são meus poetas da biblioteca Pública do Paraná. Devo a eles a qualidade de ser palestrista com platéia garantida. Nunca me abandonam e nem me deixam falando sozinha. Então, são eles que me apóiam e não o contrário. E são meus interlocutores também. Logo, logo, o link desta entrevista estará fazendo parte de inúmeros blogs e redes de contato que eles muito bem administram.
Acompanharam minha pesquisa de pós-doutorado: tempo de maradigmas. Esta pesquisa tem muito de Heráclito e de Bachelard. E por aí vamos,e por aí vão, me fazendo acreditar que a poesia reconstrói nosso olhar e nossa relação com o mundo.


No momento estou escrevendo a apresentação do novo livro do grupo: Pó&teias II.

8. Riqueza de imaginário e de esperanças, o texto comovente de seu livro O Sapato Falador: Como surgiu a inspiração ou a ideia desse livro?


Na época que eu tinha TV, assistia por volta de 1984, cenas de uma trágica enchente, no Sul do país. “O Sapato Falador” foi meu primeiro livro editado em 1985. Agora, reeditado pela Cortez, coincidiu com nova enchente no Sul do país. Acho que o sapato novo, o sapato que se ganha é um objeto mágico e cheio de encantamentos. É lá onde está o pé. Lá onde estamos situados. Lá onde pisamos e andamos. Um sapato é esquerdo e outro é direito. Aqui tempos outra conversa entre diferentes. Mas a caminhada sugere um compasso, um acordo. O livro me trouxe muitas alegrias. Recentemente ele foi lançado na Feira do Livro de Porto Alegre e recebi retornos muito significativos de leitores de todas as idades. Por mim, que, “O Sapato Falador” fale muito ainda.


9. A senhora demonstra sentir satisfação em participar de uma Associação de luta dos autores. Como vê e qual importância atribui à participação em entidades representativas dos escritores?


Acho importantíssimo estar entre nossos pares. Acho tão importante que até aceitei a representação da mesma, no Paraná. Estamos acompanhando os avanços a nível nacional em relação aos nossos interesses, como classe leitora e escritora. Acompanho na nossa lista de discussão pelo yahoo as opiniões, descobertas, modalidades de conduta diante do mercado editorial, indagações, respostas, debates, com muito interesse. Muitas vezes recorro à lista quando preciso esclarecer alguma dúvida. Há sempre alguém que tem mais experiência em determinado aspecto. E como é bom socializar estas experiências. Sinto que a AEI_lIj está passando por um processo muito rico de fortalecimento, de visibilidade e isto não foi nada improvisado. São dez anos de trabalho pelas diferentes diretorias pelas quais passou.




10. Literatura Infantil é só para crianças?


É para todo leitor. Gosto de chamá-la de adulto-infanto-juvenil. Bartolomeu Campos Queirós faz uma pergunta bem oportuna, neste sentido: existe uma árvore para adulto e outra para criança?
Respondendo esta pergunta digo que não existe nem árvore, nem lua, nem mar sujeito a compartimentos estanques. E nem existe livro para o dia do índio, dia do médico, dia do papel, dia da vacina, nada disso. Escrevemos para crianças e sabemos que os adultos selecionam os livros e temos esses leitores encantados com nossa literatura infanto-juvenil. E a literatura infanto-juvenil brasileira tem grande prestigio no exterirr Já conferi isso em feiras de livros e encontros de literatura Internacional. O público não completa a visita se antes não passa no stand do Brasil.
Só fico um pouco sem graça quando me chamam de autora infantil. É engraçado, vai ver que é por isso que nem notei que completei sessenta nos e completarei em breve vinte e cinco anos de autora.


11. Tema recorrente nas entrevistas de PALAVRA FIANDEIRA, que já foi motivo de estudos entre filósofos e escritores através dos tempos, o que é para a senhora a felicidade?



Ser amada. Quando perguntaram uma vez para Jorge Amado, por que escreve, ele respondeu para ser Amado. Vejo aí a confirmação de uma identidade existencial e social. Ele foi Jorge Amado. Mas esse Amado sobrenome, por força de uma bela ambiguidade corresponde também a amado. Quer mais felicidade que essa?
Já que é um pouco tarde para mudar meu sobrenome, outra solução seria morar numa cidade chamada Felicidade. E já vi que ela existe. Daí as pessoas perguntariam: onde você mora? Em Felicidade.
Quando fico triste, em Curitiba, e a felicidade foge de mim. Vou para Santa Felicidade, um bairro italiano e gastronômico aqui perto. Parece que volto com a felicidade a tiracolo para casa. Em resumo, para mim a felicidade vem carregada de palavras. E eu as procuro em todo lugar, nas feiras livres, nos livros, nas ruas, no ônibus.... Daí o sucesso do mexicano Agustín Lara: acuerdate de Acapulco, Maria bonita, Maria del alma... Nunca estive em Acapulco e nem me chamo Maria, mas sei que de alguma maneira ele canta pra mim.


12. Diga-nos sobre um autor ou um livro que possa realmente ter influenciado a sua vida, de alguma forma.


Esta é a pergunta mais difícil: Heráclito? Guimarães Rosa? Monteiro Lobato? César Vallejo, na poesia? As mil e uma noites? Estou lendo com meus alunos, de um curso para formação de mediadores de leitura, este livro infinito. No momento, para mim, este curso e esta leitura é o melhor presente recebido este ano. Uma história chama outra e outra e outra...


13. Enxurrada de poetas na Internet, essa biblioteca infinita. A estética e a qualidade reduzida, o brilho a qualquer custo. Milhões de internautas são poetas. Nunca o mundo teve tanto poetas. Como interpreta isso?


Os poetas com essência poética prevalecerão. A Ruth Rocha falou numa entrevista que talento aparece. Um dia, aparece. Bons poetas serão descobertos e aparecerão. Outros, talvez descubram, lendo os bons poetas, que estão em dívida com a poesia e aprenderão. O princípio democrático que permite que todo mundo se atribua o nome de poeta somente se sustenta com poesia, com vasta e profunda poesia, aquela que seja capaz de acordar o Lázaro mais profundo e sonolento que nos habita.


14. A internet aprofundou a proliferação de poetas encomiásticos, que, em grupos, associações, entidades, listas, etc, ficam elogiando-se entre si. Como vê esse fenômeno?


È uma recuperação tribal viva. Que continuem proliferando. Que continuem se elogiando, numa espécie de conspiração vital pela arte. Entendo sua pergunta. Talvez esperasse uma crítica a esta atitude, mas vou pelo contrário, na companhia dionisíaca do prazer de estar em rede, de estar-junto de saber-se em estado de pertencimento grupal. Isto é de uma atualidade bárbara. O cotidiano que se enraíza antropologicamente em tempos milenares. Grupos, associações, entidades, listas, são marcas reais de um imaginário que desde sempre nos espia, com seu olho congregador.


15. Embora todos, obviamente, sejam importantes, se tivesse que falar de um de seus livros, qual deles escolheria?


Dentre os teóricos é fácil escolher: Criança e Poesia na pedagogia Freinet (Paulinas).
Dentre os literários...Formigarra/Cigamiga (tentando reeditar). E dentre os bilíngües “Quando as montanhas conversam/Cuando los cerros conversan” (Paulinas). Dentre os juvenis: “Aranha Castanha e outras tramas”... Esta pergunta também é difícil. Como escolher? Essa história de pedir pra mãe: qual o filho mais amado? Bom é descobrir qual o livro preferido do leitor.

16. Muitos permanecem na crença do "Eu não cito o outro, o outro não existe". Não é um comportamento literário apenas, ocorre de um modo geral nas artes. Como conviver com esse tipo de consciência? Qual a contribuição que um escritor pode dar para modificar tal coisa?


E ocorre também nas ciências e na política. É pertinente ao humano. Será que nos cabe querer mudar isso? Vejo com serenidade o ego que atua cortando fios dos outros aqui e lá. Eles não sabem o que fazem. E não sabem que o mundo é uma rede infinita de conexões. Uma teia onde um se encontra com o outro quando menos espera. E a magia da internet colabora e muito para aproximar as pessoas. Hoje em dia não há problema nenhum, se alguém se queixa de não ser citado aqui ou lá. Enquanto acontece essa queixa, pode estar sendo citado, num canto do mundo que nem imagina.
Nada melhor do que admirar genuinamente a arte e o talento do colega. Isto é um exercício estético e humanizador. Estas entrevistas da “palavra fiandeira” estão na contra-corrende de atitudes menores. Há um exercício de olhar a arte do outro. Nesse sentido me sinto profundamente agradecida e bem “existida”.



17. A senhora realiza também oficinas e cursos de crônicas e contos. Fale-nos da crônica na formação do leitor juvenil.


Desde 2004 estou inventando meu trabalho. E desde 2006 que trabalho diretamente com oficinas de criação literária e de leitura pela Fundação Cultural de Curitiba e pelo Paço da Liberdade. Curitiba está ficando uma cidade bem literária e esta mudança é recente, ou talvez eu não a descobri antes?


No momento estou ministrando oficinas de crônicas para adultos e para jovens bem jovens. Em relação aos jovens estou aprendendo sobre eles, sobre seus interesses, suas rebeldias, suas expressões tão definitivas, traduzidas pelas palavras sempre, nunca, jamais, juro, impossível. Um universo que eu não conhecia e fico também fascinada pela força expressiva deles e pelo jeito que tomam a vida com tanta determinação e preocupação com a questão profissional. Na oficina procuro levá-los ao encontro com o imaginário que eles chamam de “viajar na maionese” e morrem de medo de “pagar mico”. Daí, aos poucos, soltam-se e fazem as pazes com a maionese e até com o mico. Depois de muito riso, começam a escrever. Com a rigidez de qualquer tipo de tensão, a escrita não se solta e não acontece. A crônica permite dialogar com o cotidiano, ser interlocutor dos detalhes mínimos que são ampliados pela percepção e habilidade do cronista. E exige a escrita rápida. A inspiração é o tempo tirano que quer hora e dia para receber a crônica nova.



18. É lenda ou realidade o que afirma o sistema editorial, de que poesia não vende? Caso seja real, a que atribui tal situação?


Será que essa afirmação não foi fabricada? Já cheguei a pensar nisso, porque eu constato que as pessoas gostam de poesia e comprariam mais livros de poesia se os atendentes de livraria não estivessem sempre com respostas como: “ o livro está no sistema, mas não na livraria”; “esgotado”; “se encomendar o livro, mandam trazer”... Essas respostas desanimam qualquer leitor. Já me aconteceu de pedir livros de Sidónio Muralha nas livrarias da cidade. Ele é um poeta português que casou com Curitiba e morou bom tempo aqui. Os livreiros não sabiam quem ele era. Eu precisava repetir várias vezes o nome. E quando falaram que os livros dele não tinham e que iriam fazer pedido, etc. e tal...Eu mesma fui achar os mesmos na estante.
Acho que a poesia não está disponível. Isso é diferente do que afirmar que poesia não vende.
Tenho dois livros de poesia “Se Tivesse Tempo” e “Lâmpada de Lua”. E eles foram bem vendidos, enquanto estavam disponíveis. Tomara que eles sejam reeditados em breve.



19. A senhora destoa, pude reparar certa vez ao sentir a força expressiva de sua poética numa lista de relacionamentos literários de luta pela regulamentação dos direitos trabalhistas do escritor e do ilustrador, quando apareceu com uma intervenção puramente poética. De fato, "a poesia não pede licença e às vezes escapa em momentos pouco convenientes, causando estranhamento", como a senhora mesma disse. Falando nisso, quando a poesia entrou em sua vida?


A poesia não pede licença para acontecer. Eu somente percebo isso quando os outros (interlocutores) observam isto de alguma maneira. Em reuniões burocráticas devo ter deixado escapar alguma poesia. Ou nas perguntas que faço quando vou ao mercado, ao banco, ou nas orientações que dou para eventuais empregados. Uma vez estava ensinando uma diarista a acomodar melhor a roupa que ela devia passar para ganhar tempo e ser mais prática. Não lembro exatamente o que eu falei. Sei que falei das golas e dos punhos, e das mangas. Reparei no olhar extasiado dela (como se estivesse vendo um fantasma ou algo extraordinário). Daí ela completou: a senhora fala tão bonito!...Parece que coloca as palavras dentro de uma música. É claro que perdi a lição de passar roupa e passei para a didática da percepção de poesia. Essa foi uma definição de poesia muito espontânea semelhante àquela respondida por Ricardo Reis/Fernando Pessoa: “música que se faz com idéias.


Respondendo sua pergunta:


Será que a poesia entrou desde que nasci? Se ela me acompanha desde as primeiras palavras, talvez ela tenha se afirmado quando vim morar no Brasil. Como estrangeira prestei mais atenção nas palavras. Era uma questão de sobrevivência. E foi a poesia que definiu minha estadia definitiva aqui. Gostei demais da expressão “fazer arte”. É claro que ficaria morando num país onde todo mundo faz arte! Ah, outra expressão brasileira que gosto muito e me custou algum esforço de compreensão: cor-de-burro-quando-foge. Há outras extremamente singulares: dor de cotovelo, por exemplo. E ainda, criado-mudo...São intermináveis as palavras que aprendi com minha escuta de estrangeira. O português é uma língua estrangeira rica em analogias e metáforas...Além da preciosa sonoridade, claro. Por isso sempre digo que o português do Brasil é minha língua literária.


20. Deixe uma mensagem para o leitor de PALAVRA FIANDEIRA.


Deixo uma pergunta: qual a aranha fiandeira que lhe contou sobre esses tantos fios meus? Faz tempo que não respondia uma entrevista tão provocante como esta aqui. Obrigadíssima pela oportunidade desta prosa com os leitores de “palavra fiandeira”.

E para os leitores, meu carinho enorme e minha vontade de continuar esta conversa até o ano que vem e mais o seguinte.