EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

sábado, 20 de novembro de 2010

PALAVRA FIANDEIRA - 46

PALAVRA FIANDEIRA
 REVISTA LITERÁRIA 
Revista digital fundada por Marciano Vasques
ANO 2 - Nº 46 - 20/NOVEMBRO/2010
NESTA EDIÇÃO:
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA




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Literatura brasileira em preto e branco

Por: Paula Ivony Laranjeira

Embora o fim do tráfico negreiro tenha acontecido em 1850, a abolição em 1888, é somente a partir de 1920 que há com mais força, por parte dos afro-brasileiros, a luta por seus direitos e a busca por uma identidade racial em uma sociedade que “negava” a própria existência do preconceito, como bem lembra Jorge Schwartz em Vanguardas Latino-Americanas. A partir daí, o afro-descendente que se via como objeto assujeitado e quase sempre escravizado, agora tem uma literatura não apenas feita sobre si, ele toma a “pena” e se inscreve como sujeito e escreve para si partindo do seu ponto de vista, e não mais do colonizador. Tal mudança esta passa a vigorar não somente no Brasil, mas na literatura norte americana, na inglesa e , especialmente nas produções africanas.
Em 9 de janeiro de 2003 entrou em vigor, a Lei Federal 10639/2003 que torna obrigatória a inclusão do estudo das “Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” nas escolas brasileiras. Com isso, há o “descobrimento” e a participação do negro em nossa sociedade. Desta data em diante, ele, o negro, passa a fazer parte da história e a ter uma história a ser repensada, além disso, se reconhece sua contribuição cultural e “até” seus talentos. Se antes ele era sujeito apenas nos campos de futebol e nas rodas de pagode, agora já “pode” ser um sujeito agente e atuante em vários setores da sociedade. Mas é como se a História vestisse nova roupa feita de tecidos rotos e velhos, e o mesmo que aconteceu no passado se repete, e ao invés de uma princesa-fada-madrinha que assina uma lei “dando” liberdade aos homens-escravos-negros brasileiros, no século XXI se fez através de uma lei discutida e votada por deputados magos-padrinhos que enfim dizem: “agora” vocês podem fazer parte da história, “agora” sua cultura, seus costumes, etc. podem ser partilhados.
O que a maioria desconhece é que desde o inicio do século XX os negros e negras deste país, em atos ferozes na busca pela própria identidade, a qual foram destituídos ao passar simbolicamente várias vezes ao redor da árvore do esquecimento, ainda em solo africano, e em seguida, ao atravessar o Atlântico. Porém, a alma negra acompanhou tais sujeitos nos porões dos navios negreiros, e depois de anos acorrentada nos troncos, se auto-proclama livre e ressurge como a fênix, inicialmente através dos movimentos abolicionistas e posteriormente com a Frente Negra Brasileira, com o MNU, com Geledés, o Quilombhoje, o Negrícia, Gens, entre outros movimentos. No entanto, esta era uma luta sem holofotes, sem a mídia, foi o combate “vencido” em gritos abafados, mas lembrem-se, jamais emudecidos.
E é justamente para esta “invisibilidade” que voltar-se-á o olhar neste texto: àquilo que nos foi negado saber e conhecer, mais precisamente à produção literária em que o eu-enunciador negro aflora. Mas é nos autores surgidos a partir da década de 1960 que vamos nos ater, citando-os de forma superficial, só para dar ciência de sua existência e questionar a partir disso sua segregação.
Ao observar a historiografia da literatura brasileira é possível encontrar autores negros e mulatos destituídos aparentemente de sua identidade, cujo representante mais citado é Machado de Assis, “acusado” de não levantar em seus textos a bandeira contra o preconceito, porém o que se observa é que em suas crônicas, ele lamenta a condição dos escravos, louva os que os libertam e critica os que apóiam o sistema; em alguns dos seus contos há uma postura afro-brasileira, como nos contos Pai contra mãe e O casa da vara; além disso, em seus romances não aparece o olhar explorador, menos ainda o escravista.
Se temos autores polêmicos em seus discursos, temos também aqueles que tiveram seus discursos “silenciados” por assumirem abertamente na literatura a identidade negra, é o caso de Maria Firmina dos Reis, que em 1859 lança Úrsula, romance em que o negro aparece como sujeito e representante de valores morais; temos também Domingos Calda Barbosa (1738-1800), poeta e violeiro, além de outros esquecidos e perdidos.
Em 1960 ano em que se inicia a comemoração ao dia da Consciência negra no 20 de novembro, nasce também o internacionalmente conhecido Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, uma negra favelada que vende em uma semana mais de dez mil exemplares do seu primeiro livro, e na sequência lança Casa de alvenaria e Diário de Bitita. Outra autora com destaque internacional é Aline França, que já está na segunda edição na França com o livro A mulher de Aleduma. No grupo masculino destaca-se Joel Rufino dos Santos, que entre outras produções cita-se O dia em que o povo ganhou e Quatro dias de rebelião, tendo como objetivo reexaminar a posição do negro na história. Há também Romeu Crusoé que em 1951 publica A maldição de Canaã, raridade que constitui o primeiro romance negro da modernidade, além deste tem Filho nativo e negrinho e o inédito Crepúsculo noturno. Porém, este autor vive sozinho e esquecido no Rio de Janeiro.
Outros nomes representativos e atuantes na literatura de cunho afro, e que vale citar são: Oswaldo de Camargo, Conceição Evaristo, Oliveira Silveira, Geni Guimarães, Mirian Alves, Éle Semog, Cuti, Esmeralda Ribeiro, Marcio Barbosa, Sacolinha, Celinha (Célia Aparecida Pereira), Cristiane Sobral, Marise Tietra, Jônatas Conceição da Silva, Adão Ventura, José Carlos Limeira, e tantos outros que publicam desde 1978 nos Cadernos negros, sem contar aqueles que publicam de forma independente.
Depois de elencar tantos nomes que escrevem a partir de um eu-enunciador que se sabe negro e se quer negro, como bem lembra Zilá Bernd, vem a pergunta: Quais destes autores você conhece? Quais deles, depois da lei 10639/2003, estão citados nos livros didáticos? Vale salientar que em um país territorialmente grande, e com uma vasta produção literária como o Brasil, não se é obrigado a conhecer todos os escritores e suas obras. Mas não conhecer nenhum representante de uma literatura voltada a discutir e representar temáticas afro-descendentes é no mínimo, um convite a refletir sobre o espaço para tais autores nas grandes editoras, na mídia, nas escolas e nas universidades.


PAULA LARANJEIRA

Paula Laranjeira é ativista cultural, fundadora de blog cultural, articulista e colaboradora de PALAVRA FIANDEIRA.


 TIO JOÃOZINHO
Regina Sormani

Tio Joãozinho, assim ele era chamado, carinhosamente pelos amigos e parentes. Seu nome era: João Telêmaco de Melo Senra.
Nasceu em Santos, e ali se estabeleceu como farmacêutico homeopata da farmácia da Sé.
Seguiu a profissão do pai, João Tomás de Melo Senra, que foi um dos primeiros homeopatas de Santos . Tio Joãozinho continuou manipulando as fórmulas elaboradas pelo pai, que eram famosas  pois ajudaram inúmeras pessoas, dentro e fora do país.
Muito alegre, cordial, costumava caminhar seis quilômetros diariamente pela praia, apesar da idade avançada. Tio-avô dos meus filhos, adorava conversar com as crianças. Não faltava aos aniversários, sempre com bom humor e cheio de novidades parar contar. Certo dia, minha filha Raquel, perguntou-lhe porque morava sozinho e ele, com lágrimas nos olhos, contou que tivera, sim, um grande amor na vida, mas, a amada morrera e nunca mais encontrara ninguém que a substituísse.
Sempre ajudou financeiramente diversas entidades beneméritas sendo a São Vicente de Paula,  sua favorita. Assim como o pai, pertencia à maçonaria. Não teve filhos, mas, apoiou e orientou as irmãs, durante toda a vida. Faleceu aos 88 anos, na cidade de Santos, enquanto descansava na sua cadeira de balanço.
Quero, nesta ocasião, prestar minha homenagem ao cidadão santista, grande farmacêutico e  querido tio-avô dos meus filhos.
Valeu, tio Joãozinho!


REGINA SORMANNI
Regina Sormani é escritora com vários livros publicados, e coordenadora da Regional de São Paulo da AEILIJ  - Associação dos Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil do estado de São Paulo


O Negro na Publicidade
Jéssica Lima

“... Zumbi, o herói de um povo, que precisa ser urgentemente resgatado pela história, pela mídia, e pela vida desse mesmo país”.

Solange Martins Couceiro de Lima, 1991.

Se voltarmos na história, rememoraremos a triste situação do preconceito da sociedade e da Igreja com o negro. Não só no Brasil, mas no mundo, o preconceito racial sempre existiu, e como consequência, a luta para transformar este quadro. É fato que até a “Abolição”, o negro não era considerado cidadão, tampouco tema na literatura e nas artes.

Teoricamente há a democracia racial no país, considerada mito por muitos autores, dentre eles a historiadora Emília Viotti da Costa, que afirmou que “no Brasil, o mito da democracia racial obscureceu as diferenças raciais”.

Também dizia Florestan Fernandes (líder da escola revisionista no país) sobre a questão racial, “O brasileiro tem o preconceito de não ter preconceito”. Há tantos livros, teses e artigos que tratam sobre a democracia racial no país, que ajudam as pessoas a entendê-la ou questioná-la através da história, que data bem tais questões.

Falar de consciência racial é um assunto de vários aspectos que preencheria páginas e páginas, mas, aqui abordarei um pedaço do tema, que é o negro na publicidade.

Percebe-se que hoje há uma moção maior com a raça negra na mídia. Vemos mais anúncios publicitários preenchidos por negros, se compararmos às campanhas de alguns anos atrás. Não só a publicidade, como outros meios de comunicação vêm trazendo a raça negra, seja dentro das novelas como protagonistas, capas de revistas, apresentadores de televisão, etc. E também o cinema que, há pouco tempo, trouxe para as telonas a primeira princesa negra da Disney.

Recentemente foi comprovado através de um estudo feito pelo pesquisador Carlos Augusto de Miranda e Martins para a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, que houve um crescimento da figura negra na publicidade nos últimos anos, porém houve poucos avanços em campanhas que valorizam o negro, colocando-o frequentemente como o subordinado e o branco, o subordinador. “Fica a impressão de que os cargos executivos na empresa estão reservados exclusivamente para os brancos”, conta Martins.

Lembro um ponto abordado por Eduardo Galeano, historiador e jornalista, no livro “O teatro do bem e do mal”, sobre os negros que no passado utilizavam cremes ou maquiagens para clarear a pele, como uma não aceitação da identidade. E existem, sim, tais produtos com a promessa de clarear a tonalidade da pele, como também a defesa do cabelo liso, pois assim é a referência trazida pela mídia, ideia muito mais forte num passado não distante.

A figura branca, de fato, é a mais vista nas campanhas, os negros ainda estão em baixo número na publicidade. Em contraponto, nota-se atualmente que não é defendido somente a utilização das madeixas lisas ou a pela clara. Hoje assistimos uma publicidade direcionada aos cuidados com os caracóis dos cabelos e a valorização da pele negra através de cremes e maquiagens.

O quadro está realmente mudando? Cumpre-se somente um papel étnico-racial?

O Brasil não deixou de ser um país que tem preconceitos raciais, o negro ainda carrega certos estereótipos perante a sociedade, e a publicidade acaba por refletir esta situação. Enquanto profissional da área, sinto-me infeliz por afirmar esta realidade. Gostaria e espero ver a publicidade em prol da diversidade racial e do respeito. É lamentável saber que a publicidade compactua com o racismo, mesmo que de uma maneira camuflada.

Há uns dias, tomei conhecimento de que a faculdade Zumbi dos Palmares incluiu na grade do curso de publicidade e propaganda o estudo sobre a participação dos negros em campanhas, com a proposta de mudar um quadro estigmatizado.

Os negros são consumidores ativos, e tanto eles quanto os brancos utilizam-se, na maioria das vezes, da mesma marca, do mesmo produto ou serviço. Então, por que a ausência de negros na publicidade? O termo igualdade precisa de maior atenção.

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Campanhas que causaram polêmica e discussões no Brasil são as da marca Benetton, por sugerirem diversas leituras de seu conteúdo talvez racista, talvez não. Cabe a cada um perceber e questionar tais anúncios, refletir sobre. A especialista em questões étnicas, Solange Martins Couceiro de Lima, analisou algumas das peças publicitárias da marca num artigo bem interessante, publicado em 1991. Ela afirma que a marca traz em suas campanhas “uma espécie de polissemia, uma mesma imagem permitindo várias interpretações num jogo pleno de ambiguidade”.

Voltemos há mais de dez anos, para uma campanha em que Solange Couceiro deixa claro que não há como não ver um conteúdo racista: A Benetton coloca num outdoor duas crianças, uma branca, de cabelos loiros, enrolados, rosto redondo, abraçada a uma criança negra, de belos olhos e cabelos penteados com um formato a parecerem dois chifres. “Eis a simbologia cristã”, afirmou Couceiro, “uma associação do negro ao mal e o branco ao bem”. Como será que o público encarou esta campanha? Vale repensar sobre cada publicidade que vemos, ao invés de deixarmos nos guiar pelo status de uma marca e fecharmos os olhos para questões mais importantes e urgentes.

Não estou aqui para discutir a campanha em si, e sim, para falar amplamente de uma questão que parece estar em fase de mudanças, mas, que falta muito para ficar ótima. A publicidade assunta sobre vários aspectos dentro da questão racial no Brasil e no mundo, e cabe a nós, profissionais da comunicação ou não, estar atentos a esse tema que muito pinta a desigualdade através da arte. Só assim, perceberemos quais são os problemas de verdade.





JÉSSICA LIMA
Jéssica Lima é Publicitária e colaboradora de PALAVRA FIANDEIRA