EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

sábado, 24 de julho de 2010

PALAVRA FIANDEIRA 37




PALAVRA FIANDEIRA

REVISTA DE LITERATURA
ANO 1- N° 37

NESTA EDIÇÃO:

Diretamente de Portugal:
ANA DE ORNELAS
Realização: Carmen Ezequiel

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SOMBRAS COMUNS
Entrevista a Ana de Ornelas

Por Carmen Ezequiel - PORTUGAL



Um dia, nas minhas andanças pela auto-estrada rumo até casa, surge-me a ideia: porque não um poema meu? Será que ainda saberia escrever? Será que sairia alguma coisa sentida?”
Ana de Ornelas


Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo. E que posso evitar que ela vá à falência. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da alma. É agradecer a Deus cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um “não”. É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta. Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia vou construir um castelo…”
Poesia de Fernando Pessoa

Poesia e psicologia. Unem-se na tênue linha do desentendimento racional e emocional. Enquanto um descreve um estado emocional ou a essência do que se vive, o outro entende esse mesmo estado e tenta, mesmo que por vezes impossibilitado, ajudar quem a ele se prende ou prendeu.
Sombras Comuns mudou um pouco nas suas palavras, oferendo-vos e relembrando um excerto da Poesia de Fernando Pessoa que, como em toda a sua obra, soube identificar a verdadeira essência do ser, emocional e racional.
Apenas as palavras se modificam, mantém-se o propósito, que é o do vos apresentar mais um fantástico Ser, que como ela própria diz “escrever é terapêutico” e que vive “em relação com a psicologia: alimenta a alma e a mente nesta reciprocidade consentida por ambas as partes”.
Aqui, entrevista-se Ana de Ornelas, psicóloga e poeta.
Psicóloga dos outros, poeta de si própria.
Aqui e agora, vos apresento Ana Isabel Rodrigues de Ornelas.

PALAVRA FIANDEIRA – Fale-nos um pouco da sua história de vida. Quem é Ana de Ornelas?
Ana de Ornelas – É sempre difícil falar de nós ou da nossa história de vida mas, enfim...sou eu!
Nasci em Lisboa há algum tempo e quando tinha mais ou menos 18 meses de idade, os meus pais resolveram, como era comum na altura, tentarem melhorar as suas condições de vida migrando até África, mais exatamente, até Angola.
Em 1975 vim completar o meu 15º aniversário a Portugal... A revolução de Abril apanhou-nos no meio…
Sem dúvida, uma altura complicada para muita gente; enquanto adolescente e estando até aí reduzida ao mundo de um Colégio Religioso em regime de internato, a mudança na altura foi extremamente complexa; não bastava estar a viver a ambivalência de uma adolescência, ainda me vi confrontada com uma realidade absolutamente desconhecida e assustadora.
Perdida neste imenso desconhecido que me trazia ansiedades e medos, investi, pela solidão e desencontro comigo e com o mundo, na poesia. Era algo onde me sentia confortável e onde conseguia colocar tudo o que não queria pensar alto com medo de o fazer.
Os elogios e os estímulos de quem eu permitia ler os meus poemas eram incentivadores. Até os de minha mãe que, de forma velada e sutil nunca deixava de acrescentar: “Não te esqueças que isso não dá dinheiro. Concentra-te nos estudos”. Às vezes, até desse tempo em que perdia a escrever, eu me sentia culpada…
Enquanto frequentei o 6º e o 7º ano do Liceu (atuais 10º e 11º), apaixonei-me pela Filosofia e pela Psicologia…
Habituada a um regime austero de um Colégio de Freiras, encontrar um ambiente de anarquia completa em contexto escolar, pelos tempos que se viviam, não ajudou, de todo, a promover um bom sucesso acadêmico.
Resultado, cheguei aos meus 19 anos e resolvi deixar de estudar…
Resolvi procurar emprego mas, a psicologia, já se tinha instalado definitivamente no meu Eu. A poesia, essa, estava declaradamente arrumada: eu não conseguia esquecer o fato de que, a poesia não dá dinheiro!
Depois de alguns empregos…, com 22 anos encontrei aquele que me deu estabilidade econômica… era bancária...
Entre o banco, a minha relação e mais tarde a maternidade, a vida foi correndo sem muitos sobressaltos, de uma forma mais ou menos planeada. A poesia continuava, pensava eu, absolutamente esquecida. A psicologia não…
Chegada a altura… - reunimos a família…, conversamos sobre este assunto, … e concluímos que apesar das perdas que esta mudança iria implicar estaríamos dispostos a correr esse risco. E assim, já com uns “aninhos” em cima, dei por mim a sentir o mesmo frio na barriga que me lembrava o meu primeiro dia de escola, algures perdido nas memórias de um passado longínquo: ali estava eu, naquele mundo acadêmico, a fugir das praxes, perdida de medo, no primeiro dia de faculdade, como trabalhadora estudante.
Após conclusão do curso instalei-me, com uma outra colega, num espaço privado e começamos…, a exercer clínica privada…
Com o passar dos tempos e sempre atenta ao contexto político e econômico, … e aproveitando-me das mudanças institucionais e, cada vez mais a querer investir na área da Psicologia, solicitei então a minha passagem à reforma e assim, desde inícios de 2007 que estou a tempo inteiro, entregue de alma e coração, às patologias dos tempos modernos.
Foi, na construção do meu site que do nada, a poesia volta a aparecer. Idealizando a página inicial pensei colocar um poema, entre tantos, de algum dos poetas portugueses que eu admiro. Era difícil a escolha… Um dia, nas minhas andanças pela auto-estrada rumo até casa, surge-me a ideia: porque não um poema meu? Será que ainda saberia escrever? Será que sairia alguma coisa sentida?
(…) Não resisti. Encostei o carro à berma, peguei na minha caneta, no meu bloco e escrevi. Ainda assustada por este despontar, li, reli, voltei a reler e gostei. Fazia sentido o poema. Dava vida ao lamento de todos nós em determinados momentos da vida…
Assim, nasceu o site. Assim, renasceu a poetisa...



PF – Vive da psicoterapia e vive com a poesia. Qual entrou primeiro na sua vida? Fale-nos um pouco de cada uma e da importância que têm em si.
AO – Sem me querer repetir... Claramente a poesia entrou primeiro na minha vida. Apesar de ser algo comum aos adolescentes; estes períodos (entre outros) de “escritores” e “poetas”, em determinado momento do seu crescimento, como uma forma de se encontrarem ou, até de rebeldia ou, de exorcizarem as suas dores; esse meu período marcado por tantas alterações importantes, sem dúvida, estimulou o meu lado mais poético. Há quem escreva sobre a natureza, o amor; outros, sobre a felicidade; outros escrevem porque escrevem; eu, olhando hoje as coisas com um olhar mais profundo que passa para lá do evidente, reconheço que a minha escrita já teria um sentido terapêutico; eu já escrevia para exorcizar a mágoa, a dor, a tristeza e o desamparo que acompanhava a minha dificuldade em aceitar os acontecimentos tão intrusivos ao meu EU, que me sugavam e limitavam, dos quais eu não era responsável (só queria ser adolescente) e mais, não tinha tido qualquer opção de escolha. E perdoem-me os poetas e poetisas que cantam outros temas, mas eu defendo que é na tristeza e na dor que o poema fica mais poema, que a obra fica mais completa, que a dor fica mais dor. E há cada poema mais intenso no tema.
Hoje, depois deste caminhar no deserto, tal era a falta de inspiração (ou medo de pensar a dor guardada, recalcada, trancada de um passado) reconheço mais do que nunca a importância que eu dou ao meu escrever. Escrever é terapêutico. Na escrita, permitimo-nos através das letras dar vida a emoções impregnadas até ao mais íntimo de nós, sem corrermos o risco de nos perdermos na incompreensão do nosso sentir. O papel é o confidente. O lápis ou a caneta, a batuta da musicalidade emocional.
A psicologia entrou pelas palavras de um professor de Filosofia no liceu e mais tarde pela própria disciplina. Entrou sem dar por isso, tal era o sentido que tudo que eu lia e aprendia diariamente fazia para mim.
Hoje, passado todo este tempo de investimento nesta área enquanto aluna e agora enquanto psicóloga, reconheço que a psicologia instalou-se definitivamente na minha vida. Como diz o Psiquiatra e Psicanalista António Coimbra de Matos “ o cérebro alimenta-se de informação; a alma, de relação”; eu vivo em relação com a psicologia: alimento a alma e a mente nesta reciprocidade consentida por ambas as partes.

PF – Escrever é uma terapia, um escape para os seus problemas? Ou, é uma abordagem ao estudo do sofrimento e problemas que ouve dos outros, para mais facilmente encontrar soluções?
AO – Escrever é terapêutico como qualquer outra arte! Não é uma terapia nem um escape para os meus problemas, nem uma abordagem com um objetivo de ajuda ao entendimento do sofrimento dos outros. Escrever, para mim, é terapêutico pelo espaço que o escritor dá a si próprio de, ficcionando, poder falar sobre algo que de outra maneira era-lhe extremamente difícil pensar, quase impossível. Dou um exemplo: muito recentemente decepcionei-me com uma amizade de longos anos e por dificuldade – dada sensibilidade do assunto – de comunicação entre nós, esta ficou perdida entre mal entendidos e certezas inconfessáveis. Impossibilitada de resolver por espanto pelo acontecido, escrevi a mágoa, a decepção e o sentido de perda de algo. Ao expor a comentários, a devolução feita pelo que liam, espantou-me pela consciência que eu fui tomando, de fato, da dor que tudo aquilo me estava a causar. Vivi-a através das letras. A dor deve ser vivida e sentida na íntegra. Não devemos mascará-la, relativizá-la e ilusoriamente dá-la por resolvida. Não. De todo. Deve ser sentida e chorada. Com o tempo as coisas vão sarando, lentamente, até poderem ser pensadas sem angústias e medos.
Cada vez que um paciente trás com ele a dor, mágoa ou tristeza, por perda de alguém, de algo ou até de uma relação, é na relação terapêutica, que vai sendo por nós trabalhada, que eu o vou ajudando a pensar a emoção, sem fugir a tudo o que possa sentir. Não procuro soluções através da escrita para os problemas que me trazem. As soluções são procuradas e encontradas a dois em cada hora que estamos. O que fica, às vezes, desperta também em mim um sentir idêntico mas, por motivos diferentes. A sensação de perda do objeto amado, pensado a dois, pode trazer com ele a recordação desse sentir e a forma como eu própria o fui trabalhando através da minha análise. Eu identifico a dor. Fica mais fácil descrevê-la. E é assim que nasce o que escrevo...



PF – Os portugueses estão doentes emocionalmente? Que “peso do mundo” os incapacita de serem felizes?
AO – Bom, sou levada a crer que o mundo está doente emocionalmente. Não só os portugueses.
A incapacidade do ser humano em ser feliz passará, quem sabe, pela perda e mudança de valores a que nós fomos sendo expostos. Ser feliz, hoje em dia, resume-se, quanto a mim, à quantificação de valores reais tidos pela aparência. Neste registro, vai-se perdendo parte da vida. Interessa o que em termos de valores reais, podemos capitalizar como um objetivo de felicidade; por exemplo: o carro XPTO, a casa com piscina, as férias num destino exótico, as roupas de marca; sinais externos de felicidade que não são senão objetos de mero prazer imediato e etéreo... pelo caminho vão ficando momentos de extrema solidão, não sentida pela aparente ilusão de posse de pequenas partículas de felicidade.
O “peso do mundo que os incapacita” não é senão o peso da sua própria incapacidade em gerir espaços mentais e momentos de extrema acalmia essenciais para o encontro conosco próprios.
Os adultos que me procuram, fazem-no porque se deparam com um infinito vazio de alma que os deixa órfãos do seu próprio EU. O peso desta realidade dobra-os perante a dor e a tristeza sentida que, sendo vivida a seu tempo, sem fugas para a frente, como costumo salientar, não é senão entendida, aceite, trabalhada e “arrumada” tranquilamente em nosso ser. Quando este falso bem-estar dá lugar a uma realidade diferente mas autêntica, fica-se perdido, sem rumo, vagando de forma aleatória pela vida e aí, às vezes doentes, tanto mental quanto fisicamente. No todo do nosso ser, entendo que haja uma correlação entre a mente e o corpo. A mente sofre, o corpo somatiza.

PF – A felicidade é um estado do Ser ou um estar de ser? Porque é complexo encontrá-la?
AO – Felicidade: estado da pessoa feliz; Feliz: que tem felicidade.
Estas são as definições no dicionário. Eu, não consigo ter uma definição. Quase que me lembra um produto. Felicidade: Compre! Dois em um! Felicidade/Feliz!
Se é um estado do ser ou um estar de ser? É mais um estado como qualquer outro que sendo mais um, num todo contribui para um estar Feliz!
Divagando um pouco, a complexidade em encontrá-la talvez passe por estar sempre tão perto e sem necessidade de ser encontrada que não reparamos e achamos que passamos o tempo a perdê-la e a procurá-la. Opino que o fato de me levantar todos os dias com uma enorme vontade de sorrir, olhar o sol, ouvir a vida, sentir o tempo na pele, só por si já é uma felicidade e como tal, um estado do ser em estar feliz. O estar viva é um presente diário para mim. O dar o bom dia à minha filha e ao meu marido e ter como resposta um sorriso ou, um amasso ou, um arrufo, porque foi cedo demais, é um momento a dois ou a três de felicidade. Ouvir música é um estar bem! Ver um concerto de alguém que gosto é um momento agradável e que me dispõe feliz. Ouvir os meus entes queridos e saber que eles estão bem e que estão ali quando lhes ligo, é um momento feliz. Perceber a mudança de comportamento nos meus pacientes trazendo-lhes isso equilíbrio e bem-estar, é um tempo feliz.
Tocar-me, sentir-me, ouvir-me, perceber-me, olhar-me é sinal que estou aqui e agora e é no silêncio do ruído do mundo que traz com ele momentos de autêntico prazer e felicidade que eu admito: por esses instantes, eu consigo ser e estar feliz!


Moinho em Ardido, Benedita, Portugal (fotografia tirada por Carmen Ezequiel)

PF – Vamos dar a conhecer um pouco do nosso Portugal aos leitores do Palavra Fiandeira. Com que cidade ou local em Portugal mais se identifica e porquê?

AO – Tenho imensa dificuldade em indicar uma cidade ou local de Portugal com a qual me identifique mais. Eu costumo dizer que se não tivesse nascido em Portugal, eu gostaria muito de nascer em Portugal!
É um país com imensos encantos espalhados de norte a sul e ilhas. O Norte, com a sua vegetação, geografia, história, monumentos, gastronomia, encanta-me no Inverno. De Viana do Castelo a Bragança; passando por Braga até ao Porto; começando a descer por Aveiro; olhar Coimbra enquanto se ouve o fado cantado por estudantes; passar o Pinhal de Leiria e lembrar a nossa história; percorrer Lisboa e deslumbrar-se com a cidade das sete colinas; entrar pela costa Vicentina e chegar ao Algarve e mergulhar nas águas cristalinas e temperadas… como dizia e repito, se não tivesse nascido em Portugal eu adoraria ter nascido em Portugal.


Nós, pais adultos, já não sabemos comunicar”.
Ana de Ornelas
PF – Esquecemos de comunicar com as nossas crianças. É somente isso que os pais adultos necessitam fazer? Reaprender a comunicar? Ou, reaprender a amar? Saber escutar?
AO – É. Os pais esqueceram-se de si próprios e da criança algures perdida, esquecida e arrumada dentro deles. Se não fossem eles vítimas desse próprio esquecimento, provavelmente entenderiam o dialeto dos seus filhos que sendo entendido por todos nós, a interpretação fica muito aquém da realidade sentida pelas nossas crianças, pelos nossos filhos. É neste hiato de tempo que se perde a comunicação. Ouvir, escutar, entender é uma arte. Sendo algo tão próprio do ser humano e do verbo comunicar, raramente conseguimos que isso aconteça sem que as palavras tragam consigo uma carga de conceitos, preconceitos e ideias pré-feitas que passam quase sempre por nós e nunca pelo outro. E assim, quando o outro fala, nós ouvimos aquilo que queremos ouvir e que entendemos como ouvintes. Nesta comunicação perdem-se mensagens distribuídas por partículas de letras que só o indivíduo entende. A criança, nosso filho/a, ainda consegue ser espontânea, autêntica e sem filtros! Nós, pais adultos, fomos perdendo esses adjetivos algures na linguagem aceite, permitida e autorizada pelo contexto social. Assim, quando o nosso filho se agarra às nossas pernas aos gritos, pedindo socorro pela angústia que sente ao separar-se, às vezes, o nosso comportamento passa mais por o sociabilizar do que propriamente entendê-lo, contê-lo e devolver-lhe a sua angústia pensada e tranquilizada. Não temos tempo e acima de tudo, temos o olhar do outro em nós, entendido como crítica.
Não acho que os pais tenham de reaprender a amar. Sempre que me procuram não tenho qualquer dúvida que por trás daquele gesto está um infinito amor pelo filho/a que me trazem. Talvez tenham é que reaprender a colocarem-se na relação dando muito mais tempo ao afeto, ao amor, do que ao prazer imediato que proporcionam aos seus filhos ao oferecerem-lhes compensações pelos momentos de ausência sentida como culpa.
Às vezes, a irritabilidade de uma criança passa por uma enorme carência de afeto e atenção. Parar, baixar-se ao nível do seu olhar e dizer-lhe: eu entendo que queres que eu te dê atenção, mas agora não consigo. Se esperares um bocadinho vou escutar-te, pode ser?
Não, não acho que os pais tenham de reaprender a amar. Terão, sim, quem sabe, de demonstrar mais o amor, através de atitudes e comportamentos que mesmo quando são firmes e irredutíveis são prova de um amor incondicional dando à criança uma sensação de confiança, segurança, proteção e importância, entre outros.
Um NÃO firme é um enorme ato de amor.

PF – Como estão as nossas crianças e os nossos jovens emocionalmente? Ultimamente que se falam de temas como o bulling nas escolas, contra colegas e professores; a complexa integração social nos mais variados grupos; o desrespeito para com os outros; assaltos a carros e estabelecimentos; o ser diferente…? Como serão os adultos de amanhã?
AO – A resposta ocuparia grande parte da entrevista. Acredito que a maior parte dos jovens ande carente, inseguro, perdido nesta imensidão de estímulos que os fazem querer tudo e sentirem constantemente um não terem nada e sobretudo com uma enorme carência de amor. Mas acredito também, que existem jovens seguros, respeitadores, conscientes da realidade, com valores elevados e que investem num futuro promissor, tanto ao nível de um bem coletivo como individual. E nesses, eu gosto de me agarrar e prever adultos de amanhã conscientes, responsáveis e sobretudo respeitadores pela individualidade de cada um. Sinceramente, espero isso.

Um NÃO firme, é um enorme acto de amor.”
Ana de Ornelas

PF – Podemos, através da poesia, chegar até à nova geração e engrandecer-lhes o espírito? De que forma podemos utilizar a literatura e como vê a mesma em Portugal?
AO – Carmen, seria tão bom conseguirmos chegar através da poesia à nova geração e engrandecer-lhes o espírito! “Estou a puxar a brasa à minha sardinha” como se deve notar... No fundo, toda a forma de arte engrandece o espírito de qualquer um de nós.
Chegar lá através da poesia, não é impossível, mas acredito que seja difícil. Os leitores da poesia, não querendo classificá-los como especiais (somos todos especiais), têm uma sensibilidade elevada que os diferencia do tipo de leitores que apreciam muito mais um bom romance, uma boa aventura de ficção científica, livros de ficção histórica, enfim. Há muito pouco seguidores de poesia no universo da literatura. Basta-nos ir aos grandes centros comerciais de venda de livros, … e, dificilmente encontramos um bom número de livros de poesia. Aliás, não há uma única bancada bem visível, dedicada exclusivamente à poesia. Parece-me ser indicador de algo. E se temos bons poetas: Mário de Sá Carneiro, Herberto Helder, Fernando Pessoa, Florbela Espanca e tantos outros...
Uma Editora de topo investir num poeta atual que se pretenda lançar no mundo da poesia é um cenário pouco provável.
Logo, não me parece ser, de todo, um tipo de literatura que tenha muitos seguidores e fãs como todo o resto de interesses literários. Ler poesia é pensá-la e interpretá-la sob um ponto de vista subjetivo, mas que em simultâneo tente perceber o ponto de vista do poeta ou poetisa, … Para a entender temos que parar, ler, pensar, interpretar.
Numa juventude em que a maioria se comunica por siglas ou letras com um vocabulário próprio; (quantas vezes eu não me vi aflita para entender o teor de uma mensagem enviada pela minha filha através do telemóvel?), em que a linguagem computadorizada é a mais usada escrevendo-se mais rapidamente do que se pensa, não se cuidando como se escreve; parece-me difícil, direi mesmo utópico pensar, que conseguiremos chegar até à nova geração e engrandecer-lhes o espírito através da poesia. Não têm tempo a perder. Os estímulos externos são bem mais importantes que os internos segundo os valores a que se foram dando mais atenção ultimamente.
Naturalmente estou a generalizar. Há um lado meu que acredita mesmo, que neste espaço do mundo que está muito para lá da minha janela haverão muitos jovens… que todos os dias despertam e ficam vidrados na poesia. Espero que sim. Sei que sim. As gerações seguintes serão prova disso.
Ultimamente, têm surgido na nossa literatura vários novos autores com estilos muito diferentes. Há qualidade em alguns, nenhuma noutros; reconheço que não leio tanto quanto gostaria porque o tempo que me resta dedico-o mais à leitura de obras ligadas à minha área de trabalho mas, quando por indicação me sugerem algo e leio, raramente consigo gostar e encontrar a qualidade que me faça estar em expectativa de nova obra. Serei eu mais exigente? Pode ser. A idade permite-me isso. Mas, seja pelo que for, só por agora, só por hoje é o que me leva a dizer sobre o estado da literatura no nosso país.
PF – Em que medida a internet e as tecnologias atuais beneficiam para o enriquecimento do povo português? Se cada vez mais as redes sociais de cada um se enchem de amizades e amigos virtuais, mas continuamos sozinhos e solitários? Com carências que nos dificultam o saber estar com o outro?
AO – A Internet e as tecnologias atuais beneficiam e enriquecem qualquer povo. Como as aproveitamos e como as usamos isso diz respeito ao espaço de cada um.
Em relação às redes sociais não vejo inconveniente nenhum no uso e abuso delas desde que tudo seja feito com equilíbrio e bom senso. Não me parece que tenham surgido para colmatar este nosso sentir solitário. Quando este estado se instala, não há rede social nem amigos virtuais que nos consigam tirar dele se não o quisermos mesmo e se assim for, basta sairmos do casulo e nos expor ao mundo lá fora.

PF – Que riscos se correm neste mundo virtual e relativamente aos direitos de autor, à rapidez da informação, disponível a qualquer pessoa, e facilidade em plagiar e imitar?
AO – Não sendo propriamente expert neste mundo virtual que menciona, reconheço que se calhar não estarei tão à vontade em responder a esta questão. Acredito que o problema não reside no conceito do mundo virtual mas em quem faz mau uso dele; e por mais que haja um controlo cuidado, uma supervisão apertada, haverá sempre alguém que não estando bem consigo próprio desrespeite e se aproveite do outro. Como se fosse da própria natureza humana...

PF – Ao longo dos tempos, o amor é abordado e retratado com distintas facetas. Na sua página – Ana de Ornelas: Psicoterapia (www.anadeornelas.com); define vários tipos de amor em sonetos variados. Porquê tantas definições para uma única palavra que é o amor?
AO – Bom: não serão tanto definições, porque amor é amor e a sua definição é universal mas mais, vários tipos de amor.
Neste mundo tão complexo dos afetos, a forma como nos colocamos neste terreno do amor tão sensível é, ao mesmo tempo, imprevisível e previsível. Lia um dia destes, de um autor recente,  Nuno Amado, Psicólogo Clínico, “Diz-me a verdade sobre o Amor”, algo com o qual concordei e ao fazê-lo, sorri com ternura: eram-me familiares as palavras usadas; o autor dizia que o amor é tudo e nada “...belo e banal... supérfluo e profundo...sério e ridículo” e que “é a pior e a melhor coisa do mundo... obsessivo, generoso, e invejoso...rico e pobre e arde e cura e mata e salva...”

Falar de Renovo
Olhar o medo,
Pensar a dor,
Sentir a alma,
Falar de amor... Olhar o vazio,
Pensar o escuro,
Sentir a calma,
Falar seguro... Olhar a certeza,
Pensar o presente,

Sentir o passado

Falar o futuro…
Ana de Ornelas

PF – “Falar de Renovo” é um poema que fala das emoções que todos escondemos dos outros. Ver, compreender, sentir e falar são os verbos para as aceitar e ultrapassar? Fale-nos um pouco sobre o mesmo.
AO – Este poema está impresso num quadro que de uma forma cuidada foi colocado no meu espaço de atendimento. No fundo, ele reflete aquilo que todos os dias acontece entre aquelas quatro paredes da sala: um profundo encontro com o self de cada um.
Ser capaz de olhar bem fundo de nós, compreender, sentir e falar, são os verbos para aceitar e ultrapassar, não as emoções que escondemos dos outros, mas as emoções que escondemos de nós próprios. Enquanto olhamos de frente os medos e fantasmas que angustiam, vamos estabelecendo a ligação com um passado, com uma história de vida, a nossa própria história. É esse trabalhar, esse colocar na relação que fala o meu poema: quando eu olho e penso a dor, sinto a alma e ao sentir, vou ser capaz de falar amor; quando permito olhar o vazio do meu eu e pensar o escuro da minha existência, trago com isso a calma da minha alma e falo com segurança sobre os meus afetos; ao lembrar e pensar um passado, consigo olhar a certeza de um presente e como tal, sonhar um futuro.

PF – “Eu amparo e, feita forte, limpo com ternura a lágrima, de quem chora a própria morte”. Quem é mais forte: a Ana de Ornelas Psicoterapeuta ou, a Ana de Ornelas poeta? Que armas cada uma utiliza no dia-a-dia?
AO – As duas são fortes... talvez a Ana poeta seja menos forte, não porque não o seja, mas porque se permite muitas vezes não o ser e quem sabe, talvez por isso, afinal de contas seja a mais forte...
A Ana poeta não usa armas ou, por outra, as letras feitas palavras, são as suas armas, acredito que sim. Através delas comunico com a linguagem do coração e da emoção.
A Ana terapeuta usa as armas e as ferramentas apreendidas enquanto aluna, solidificadas enquanto na prática, resultantes de uma aprendizagem constante que passa pela atualização através da leitura e do conhecimento de tudo aquilo que possa adquirir, mais a minha própria análise e a supervisão quinzenal. O resto, são os olhos dos meus pacientes que me dão a humildade de reconhecer que, todos os dias cresço enquanto terapeuta por aquilo que todos os dias eles me dão.

De mim... para si

Há olhares doridos, sofridos
E baços, sufocados pela dor...
Há gestos cansados, esgotados,
Gélidos e carentes de amor...

Há um universo de emoções
Trancadas, calcadas, recalcadas,
Pelo pânico das sensações
Que despertam, quando pensadas.


Há um alento pela dádiva,
Na procura de suporte,
Quando de uma forma cálida


Eu amparo e, feita forte,
Limpo com ternura a lágrima,
De quem chora a própria morte!
Ana de Ornelas

PF - Fale-nos de uma obra ou de um autor que a tenha influenciado ao longo da vida.
AO – Tudo me influenciou. Não tenho um autor ou obra que tenha vindo comigo desde sempre, não. Em cada patamar da minha existência, em cada estágio de crescimento fui me identificando e deixando influenciar pelas possibilidades de leitura que fui tendo e como tal dos autores que fui lendo.
(…) No campo da poesia, sempre admirei Florbela Espanca, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e dois poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles…
Paixão recente, surgida após ter recebido o Prêmio Nobel, por Saramago: “O ano da morte de Ricardo Reis”, “Ensaio sobre a cegueira”, “Todos os nomes”, “Jangada de Pedra”, um rol imenso de títulos.
Há um escritor estrangeiro do qual me considero fã, tal como de Saramago, que é Gabriel Garcia Marquez. Dois títulos muito marcantes para mim: “Cem anos de solidão” e “ Amor em tempo de cólera”. Um título único lido desse escritor mas que me deixou inebriada com o cheiro da sua história foi Patrick Süskind, autor de “O Perfume”.
Há um todo que me preenche e um nada que me completa. Assim o fizeram as obras que li.


PF – Quer deixar alguma mensagem para o leitor do Palavra Fiandeira?
AO – “… Na escrita, permitimo-nos através das letras dar vida a emoções impregnadas até ao mais íntimo de nós, sem corrermos o risco de nos perdermos na incompreensão do nosso sentir. O papel é o confidente. O lápis ou a caneta, a batuta da musicalidade emocional…”
Sejamos nós sempre capazes de conseguir todos os dias compor, pelo menos, uma palavra e dar-lhe a musicalidade emocional que ela merece: “Felicidade…”


Quero expressar o meu apreço e agradecimento a Ana de Ornelas pelo tempo que nos disponibilizou, numa altura em que o seu se encontrava bastante preenchido.
Mas, esta entrevista, para além da sua importância óbvia, que é a do indivíduo pela sua individualidade é, como menciona Carl Rogers (in Tornar-se Pessoa), detentora de um enriquecimento em que me/nos permite “abrir canais através dos quais possam comunicar os seus sentimentos, a sua particular percepção do mundo”.
Assim são as palavras de todos aqueles que fazem o Sombras Comuns e o Palavra Fiandeira.
Aqui, fala-se de tudo e de nada.
De tudo o que somos.
De nada que ninguém é.

Carmen Ezequiel
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Realização: CARMEN  EZEQUIEL


Carmen Ezequiel é poeta, escritora, cronista, humanista, ativista cultural, correspondente e colaboradora de PALAVRA FIANDEIRA em Portugal

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quinta-feira, 15 de julho de 2010

PALAVRA FIANDEIRA 36



PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA 
ANO 1- Nº 36 - 15/JULHO/2010
 NESTA EDIÇÃO:

ELOÍ BOCHECO
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 MARCIANO VASQUES ENTREVISTA
PARA PALAVRA FIANDEIRA:
ELOÍ BOCHECO


1. Quem é Eloí Bocheco?
Uma professora de língua e literatura, aposentada, que escreve literatura para crianças e jovens, e a quem interessar possa.
2. Já recebeu diversos prêmios literários. Poderia nos falar da importância desses prêmios em sua vida, e de que forma um prêmio pode influenciar na carreira de um autor?
No meu caso, os prêmios abriram caminho para a publicação de alguns livros, como Beatriz em trânsito ( CCMQ), e Batata cozida, mingau de cará ( Literatura para Todos/MEC), cujas premiações incluíram a edição e distribuição da obra.
3) Seu livro POMAR DE BRINQUEDO é encantado. E você demonstra vivenciar com doçura a vida da criança. Como é essa sua relação com o pequeno leitor?


Foi, desde sempre, uma relação de muito afeto, mediada pela literatura. Em classe, na biblioteca, ou como escritora, interajo com as crianças tendo livros por perto. E livros aproximam, criam laços, puxam rodas de conversas, favorecem o convívio amoroso, provocam o desejo de compartilhamento das impressões de leitura e dos efeitos dessas leituras na vida dos pequenos leitores.
3) Atuou a vida toda como professora, até a sua aposentadoria. Conte-nos, por favor, da presença do trabalho como alfabetizadora em sua vida e de que forma esse acontecimento influenciou na edificação da poeta.
Durante algum tempo alfabetizei crianças que repetiam a primeira série há anos, sem aprenderem a ler e escrever. O modo que encontrei para criar nelas o encantamento pela palavra, e motivá-las a querer aprender, já que chegavam enfastiadas de repetir anos a fio a mesma série, foi envolvê-las com a poesia., especialmente, a poesia infantil de Cecília Meireles.
De tal modo ficavam encantadas com os textos poéticos, que se empenhavam ao máximo para dominar o código e ler por conta os textos apresentados, que as fascinavam.
O envolvimento lúdico com a palavra reavivou naquelas crianças o gosto de aprender, que tiveram ao entrarem , pela primeira vez, na escola, mas perderam ao longo dos anos de insucesso. Via-se, nos olhos delas, a surpresa com o modo de ser das palavras dentro do poema. “Bola” “ jogo” “bela” passadas pelo crivo mágico de Cecília Meireles soavam diferentes, criavam sentidos, encantavam. O brilho nos olhos e o pedido para ler de novo, e de novo, o mesmo poema, até sabê-lo de cor, de tanto ouvir , elevou a mil graus minha crença nos poderes mágicos da poesia.
Essa experiência foi marcante e influenciou tanto a decisão de escrever poesia infantil, como o cuidado que tenho com as palavras ao compor um poema, o trabalho exaustivo para que o poema “pirilampeie”, como diz você, e possa ser agradável aos ouvidos dos pequenos leitores. E, se possível, possa despertar gosto por mais leitura.
4. Fale aos leitores da sua trajetória e das alegrias e frutos como coordenadora, idealizadora e editora do jornal de literatura infantil e juvenil O BALAINHO. Aproveite e conte o que é esse projeto que já vai por década.


O Balainho circulou durante dez anos pelo Estado de SC e pelo país.
Nasceu de um sonho meu e da Profa. Zenilde Durli de dialogar com os educadores de nosso Estado, SC, sobre as questões ligadas ao livro e à leitura, com ênfase na Literatura infantil e Juvenil, pela importância deste gênero na iniciação literária e na criação de uma cultura de leitura.
O jornal surgiu em agosto de 1999, com a ajuda de pequenos patrocínios. A repercussão foi muito boa, recebemos muitas mensagens de apoio, e foi, então, que a professora Zenilde Durli apresentou o projeto para a UNOESC. O Jornal foi aprovado e, a partir daí, a Instituição assumiu a publicação e distribuição.
A Secretaria de Estado da Educação de SC distribuía, através de seu malote, para as escolas da rede, garantindo que o Balainho chegasse em todos os municípios de SC, inclusive em todo o interiorzão. Sem essa parceria, não teríamos alcançado tantos leitores.
Além das remessas por mala direta, havia uma divulgação feita pelos próprios leitores, que passavam adiante o Jornal por simpatia, ou amor ao projeto, e também enviavam novos endereços para a mala direta, de modo que, a cada edição, o Balainho encontrava novos destinatários, nos mais diversos pontos do país. O professor Peter O’Sagae, que acompanhou e apoiou o Balainho desde o início, abrigou o Jornal na Revista Eletrônica Dobras da Leitura, e isto ampliou as possibilidades de visibilidade e acesso.
Recebíamos muitas cartas e e-mails com palavras de incentivo de educadores, pais, mediadores de leitura, ONGs, bibliotecários, escritores, especialistas em LIJ das principais instituições ligadas à promoção da leitura no Estado (SC) e no país.
Nos anos de circulação, O Balainho estabeleceu uma relação forte com seus leitores. As edições eram esperadas com expectativa. Quando atrasavam, vinham cartas “pedindo conta” do jornal, reclamando a demora.
Contamos sempre com a colaboração de escritores, ilustradores, especialistas, educadores, que gentilmente cediam um pouco de seu tempo para auxiliar o projeto. As matérias, entrevistas, depoimentos tiveram grande repercussão e ainda têm, pois muitas professores continuam incluindo O Balainho em seus trabalhos pedagógicos com alunos dos cursos de Letras e Pedagogia.
No retorno que tivemos, destaco os depoimentos de educadores que contaram que, com o auxílio do Balainho, mudaram seu modo de ver e tratar a literatura no espaço escolar, tornando-se, eles próprios, leitores de literatura, que não o eram, e, por isso, não haviam descoberto para si próprios nem para seus alunos a relevância de se envolverem com a linguagem da ficção e da poesia.

5. - "Batata cozida, mingau de cará", eis um de seus livros. É difícil falar de um livro em especial, pois todos são importantes, e merecem nosso carinho, mas poderia nos falar de um que muita alegria tenha causado a você?
O Batata cozida, mingau de cará será sempre um livro especial para mim. Surgiu de um desejo de recriar a experiência literária oral da infância, que foi uma experiência rica e inesquecível. O repertório oral era o alimento literário das crianças do campo, nos anos de 1960, pois livros eram uma raridade.
Escrevê-lo foi uma espécie de revivência daqueles reptos lúdico-amorosos que me encantaram naqueles dias. As imagens, as situações, as cenas são outras, mas o procedimento poético adotado é oriundo desse repertório e desse modo de celebrar a vida em versos.
Este livro, que recebeu o I Literatura Para Todos, em tradição oral, e seria, inicialmente, pela proposta do concurso, um livro para os neoleitores do EJA, encontra leitores de todas as idades, inclusive, faz muito sucesso entre crianças das creches. E isto se deve à linguagem do folclore, que é uma linguagem de sempre, de todos, marcada pela afetividade e por ecos líricos que atravessam o tempo e o espaço.

No dia da premiação desta obra, em Brasília, um agricultor de 65 anos, neoleitor do EJA, foi ao palco e leu o poema “Cutia” que faz parte do livro. Leu com a maior elegância e aprumo, sem tropeçar, sem se intimidar, fazendo pausas e marcações na leitura que me fizeram lembrar os declamadores de minha infância. Foram homens e mulheres como aquele agricultor que, sem saber ler e escrever, criaram o manancial do folclore, no qual fui buscar a inspiração para compor o livro. Marcas assim ficam para sempre impressas na história de leituras de um livro.
6. Recolher as histórias que ouviu e as recontar num livro deve ser uma fascinante experiência. Conte, por gentileza, aos nossos leitores essa experiência e as suas gratificações.

Na verdade, não recolhi, recriei aquilo que já estava ( está) gravado na memória, guardado e decantado pelo passagem do tempo. O estudioso Jesualdo diz que a oralidade possui uma expressividade única: pinta, esculpe e até grava a fogo, e está pontilhada de espécies e essências”, palavras que acolho inteiramente.
O folclore é uma referência fundamental para mim. Foi através desse repertório que entrei em contato com a palavra criadora, inventiva, mágica, lúdica, onde não faltam humor e nonsense. Recriar, reinventar, tendo como base esse manancial, é um prazer que me põe em sintonia com os sons que me embalaram na infância e deram a noção de que a palavra podia encantar, podia ser como o barro na mão do oleiro.
7. Meninas e meninos encenando seus poemas, murais de poesia, saraus, sala de leitura: saberia ou conseguiria viver longe da escola?
Procuro estar sempre em contato com as crianças. Gostaria de ir mais às escolas , porém, hoje em dia, os problemas de saúde me impõem certos limites. Mas, quando consigo ir, é uma alegria muito grande.
8. "Os textos poéticos nunca deveriam ser usados para ilustrar a lição didática ou o que quer que seja, como se não valessem por si mesmos, não fossem peças artísticas autônomas e precisassem justificar sua presença, porque, do contrário seriam “inúteis”. Alegria, maravilhamento, sonho, brincadeira, fantasia – coisas que advém do convívio com a poesia não são inúteis, ao contrário, são alimentos preciosos e necessários para o sustento da vida. " Em 2007, escreveu um editorial com o qual PALAVRA FIANDEIRA concorda plenamente. Poderia exemplificar porque isso ocorre, ou seja, porque cresceu e se instalou no trabalho educativo a utilização da Poesia Infantil , e de modo geral, da Literatura Infantil, para 'ilustrar" a lição didática?


Na origem, a literatura infantil está ligada à pedagogia, e não à arte. Creio que essa marca permanece forte, embora a LIJ tenha conquistado há muito tempo seu estatuto de arte. Os poemas, os textos não são chamados pelo seu valor literário, mas porque, de algum modo, “fazem par” com a lição.
É uma atitude pragmática que passa longe das possibilidades de encantamento e envolvimento de um texto. Talvez tenha que mudar a própria relação do mediador de leitura, no caso da escola, do educador, com a literatura. É preciso liberdade para que os textos voem, encantem, emocionem, sensibilizem, criem laços e intimidade com o leitor.
Os cursos de capacitação deveriam cuidar mais da formação literária dos educadores. Há Instituições que oferecem essa formação e dá para sentir a diferença no trabalho dos professores que tiveram, no currículo, subsídios para desenvolver trabalhos com leituras literárias em classe.
9. Seu texto tem "o ligeiro brilho dos insetos que pirilampejam". Um de seus livros conta a história de uma bruxinha que encontra uma chave mágica, e abre três portas, encontra uma chave mágica que abre três portas encantadas no Vale dos Jacarandás. Crianças adoram chaves mágicas que abrem portas encantadas, há sempre um mundo de magia a nos espreitar, esperando por nós. Fale-nos desse livro. Conte-nos dessa personagem.


A personagem é uma bruxinha, filha da terra, da mata, entendida em todos os segredos da floresta. Faz suas mágicas usando as próprios elementos mágicos da natureza, e mais os objetos que ela guarda num baú que foi de sua bisavó. São quatro os livros com esta bruxinha:
O pacote que tava no pote
Contra feitiço, feitiço e meio
A chave que o vaga-lume alumiou
Gaitainha tocou, bicharada dançou
No livro A chave que o vaga-lume alumiou, a chave, que abre três portas no vale dos Jacarandás, foi encontrada pela bruxinha durante a brincadeira com os vaga-lumes. Ela sai para procurar as portas. Depois de cada porta há um risco, um perigo, uma ameaça, um conflito, que ela tem que resolver: “ quem entra aqui nunca mais sai, a não ser que.........”
Ela não se desespera porque, como filha da floresta, sabe os sinais, sabe o compasso, conhece a música da terra, o canto mágico dos pássaros, a força das águas, o brilho dos pirilampos, os rumos dos voos no céu, e invoca esses conhecimentos para formular as soluções até o desenlace final.
Esta coleção da bruxinha, em muitas escolas, é levada ao palco e encenada pelas crianças com muito gosto.
10. Há um interesse explícito e intenso de você pelas coisas da natureza, que ao mesmo tempo, são as coisas da infância, que por outro lado nos remete à ternura da poesia infantil, da sonoridade, do encanto que traduz a beleza e a doçura da simplicidade. Certamente, esse balaio repleto de poesia que vive em você deve lhe causar muita felicidade. O que diria da incessante busca da felicidade que move os humanos?
Em uma crônica belíssima , A Arte de ser Feliz, Cecília Meireles conta sobre as coisas que vê de sua janela e que a fazem feliz. Coisas simples, cenas do cotidiano, tocadas pela poesia. A mesma autora, em um poema, refere-se a “estas vastas nuvens que os homens buscam”. Como alcançá-las? E por que, uma vez alcançadas, tão rápido se dissolvem?
Cada um sabe de suas buscas e do modo, e onde e como buscar contentamento e ventura. Creio que a busca vale a pena quando gera mais vida e humaniza. Aposto muito nas coisas simples, na arte, na literatura, na poesia como fontes permanentes de felicidade. Essas moradas ajudam a entrar em sintonia com valores que a traça e a ferrugem não corroem, por mais que “mudem-se os tempos, mudem-se as vontades”. Os novos tempos programam, direcionam, criam vontades e desejos, interferem nessa busca o tempo todo.
Comprar, trocar e jogar fora os objetos , como se faz na maneira consumista de ser feliz , é um modelo de felicidade não sustentável, que gera destruição e morte.
O filósofo Epicuro dá pistas muito boas para essa procura da felicidade quando aconselha, dentre outras coisas, levar uma vida examinada. Por certo, uma “vida examinada” pende mais para o lado das felicidades duradouras, porque quem examina o vivido não se deixa seduzir facilmente pelas ofertas voláteis de felicidade.
11. Sua poética nos remete de imediato aos tesouros e achados da oralidade, das tradições populares, da poesia oral, das rodas da infância. Como foi a sua infância?
Passei a infância numa pequena localidade do interior de SC. Era uma época em que as crianças andavam soltas, em bandos, pelas estradas de chão batido, ou trepadas nas pitangueiras e araçás, com as bocas lambuzadas de frutas, pés cascudos, cabelos chamuscados de sol.
Tínhamos os serões em que as crianças participavam, olhos muito acesos, atentas às proezas verbais do contador ou declamador. Podiam contar mil vezes a mesma história que a plateia não se cansava nem perdia o vivo interesse.
Cresci num tempo e num mundo em que a vida era feita à mão, no ritmo em que crescem as plantas ou correm as águas dos lajeados. As crianças nasciam em casa, pela mão das parteiras experientes e à luz dos lampiões.
As casas eram pontos de pousadas para quem vinha de longe. Os viajantes pernoitavam e partiam no cantar do galo para seus destinos. As crianças adoravam esta parte, pois os andantes sempre tinham muitas histórias na bagagem, alguns eram muito engraçados, bons falantes, poetas e patrocinavam cenas hilárias que faziam as crianças delirarem.
Até a religião era mágica e, de certo modo, inventada. O ponto de culto era uma igrejinha, fundada por um beato, no meio da mata, tão íntima do verde, que poder-se-ia pensar que nascera junto com as árvores. Havia uma igrejinha católica, no centro do povoado, que às vezes, freqüentávamos, mas nosso encantamento era pela igrejinha do beato.
As vivências lúdicas eram muito fortes e ajudavam a manter o gosto de viver, mesmo na dor, nas perdas, nos sofrimentos do corpo e da alma, nos golpes do destino.
12. Seus poemas incríveis, como MULINHA, são docemente comoventes por nos remeter ao abraço puro da infância. De que forma poderia a poesia ser mais divulgada no âmbito escolar, no trabalho de alfabetização, a ponto de se tornar protagonista num processo educativo de alfabetização, visto que com ela viria o doce teatro da infância e tudo o mais? Diga uma iniciativa que esteja faltando, em qualquer âmbito

Outro dia uma menina da quarta série me escreveu e contou que meu livro Pomar de brinquedo tinha sido seu primeiro livro de poemas e que havia descoberto que era muito gostoso ler poesia. Fiquei feliz com o fato, mas, ao mesmo tempo lamentei que esta criança só tenha encontrado a poesia na quarta série. Passou a alfabetização e as séries seguintes sem poesia em sua vida.
Acredito que temos que criar uma tradição de ler poemas para as crianças, como criamos a tradição de ler e contar histórias. Os educadores que fazem a experiência de oferecer poesia para seus alunos dão testemunho do quanto foi prazeroso e rico o convívio com a palavra poética.
Nunca encontrei uma única criança que descobrisse a poesia e não se apaixonasse, e não pedisse mais e mais poemas para ler. O que falta é dar acesso a este recurso mágico que tanto as faz felizes.
13. Literatura Infantil é apenas para criança?
Considerando que o adulto é o mediador entre a criança e o livro, então, o adulto deve ler a literatura infantil para acompanhar a formação leitora da criança.
Por outro lado, há livros, ditos infantis, que conseguem encantar adultos e crianças ao longo dos tempos.
14. Tem um blog intitulado ELOÍ BOCHECO - SALA DE FERRAMENTAS - O que é esse blog, quais as suas temáticas, a sua semântica, a sua abordagem? O que é a Sala de Ferramentas?
Sala de Ferramentas é o nome de um livro que conta a história da descoberta do livro literário por um grupo de mulheres garis. Clarice, é a moça que conduz a roda de leitura com estas mulheres. As leituras são realizadas na Sala de Ferramentas, onde elas guardam seus instrumentos de trabalho.
O primeiro capítulo deste livro chama-se Não vá embora, Clarice! E recebeu o prêmio Leia Comigo! da FNLIJ, em 2003
Então, nomeei o blog com este nome, em homenagem a estas mulheres e, também, porque o blog aborda questões ligadas ao livro, à leitura, à literatura, – ferramentas valiosas para um viver “examinado”.
15. "Sempre é tempo para alguém se tornar um leitor". Assim diz O BALAINHO. Como um adulto mergulhado, ou melhor, atolado na areia movediça do cotidiano áspero e quase sempre insensato, alvo da "cultura " que se despeja pela televisão, por certa mídia, etc, ou seja, um adulto preenchido por uma vida, poderíamos dizer, sem autenticidade, poderia se tornar um leitor. Que iniciativa deveria o governo realizar, além da compra de livros e ampliação das bibliotecas, tomando por base que "qualquer governo anseia por um povo leitor'
Há pessoas que descobrem o livro aos 60, 70, e até com mais idade e se apaixonam e se tornam grandes leitoras. Lecionei para a educação de adultos - atualmente EJA – e pude comprovar este fato.
Muitos fatores concorrem para a criação de uma tradição de leitura num município, num Estado, num país. O acesso aos livros através das bibliotecas escolares é, inegavelmente, um dos fatores decisivos para criar a prática leitora. Livros de ótima qualidade têm chegado às escolas públicas. Mas, sem o investimento em dinamizadores para estes acervos, bibliotecários, ou responsáveis pelas bibliotecas, corre-se o risco de ver os livros desaparecerem, em pouco tempo, ou ficarem nas caixas, ou, ainda, enfileirados nas prateleiras.
A biblioteca dialoga com o projeto pedagógico da escola porque a prática leitora perpassa todas as disciplinas do currículo. O bibliotecário é mediador e interlocutor no diálogo com as classes, com os mestres, tendo o livro e a leitura como pauta fundamental de seu ofício. Sem este agente fica faltando uma parte indispensável para que os investimentos em livros causem impacto na criação de uma tradição de leitura, a partir da escola.
16. Num de seus blogs você registra cartas, missivas, que recebeu de pessoas queridas. Cartas serão tesouros num futuro que aponta um mundo de tecnologia, um mundo virtual?
Acredito que sim. Quem, ainda, recebe cartas manuscritas deve guardá-las muito bem, pois serão tesouros, como você diz, relíquias, algo de um outro tempo e de um outro mundo. Daqui a alguns anos, o correio entregará contas a pagar, mas cartas, só por milagre.
Uma menina de Curitiba, ano passado, resolveu enviar cartões de natal, com palavras amorosas às amigas. Contou-me que foi um espanto. Ligavam para perguntar por que fizera isso, se estava com o computador quebrado.
17. Suas prosas são saborosas, são companheiras de viagens. Tem algum livro de prosas publicado, no qual poderíamos encontrar prosas que falem do lápis, da doçura das frutas, de escadas, de amores infantis?
Tenho um livro chamado Pedras Soltas, publicado pela EdUFSC, de crônicas editadas, antes, em jornal, e reunidas nessa obra.
19. Mário Quintana, Manoel de Barros... Talvez o Brasil não conheça mesmo o Brasil. Longe de tudo, poderia nos falar sobre um poeta que terá lido e muita alegria trouxe ao seu coração?
Sou devota de muitos poetas, inclusive de Mario Quintana e Manoel de Barros, que você menciona.
Gosto muito dos poetas antigos. Ludovico Ariosto me encanta até a raiz dos cabelos. Seu livro, Orlando Furioso, é uma estação de cura.
Mas, Cecília Meireles é um caso de amor à parte. Como professora lia com as crianças poemas do livro Ou Isto Ou Aquilo: O cavalinho branco, Colar de coral, Leilão de jardim, O Jogo e a bola, Rômulo rema, O sonho de Olga, Procissão de pelúcia, Avó do meninó etc. Com os alunos maiores lia as crônicas, e outros poemas da autora. Os fascínios, meu e de meus alunos, se misturavam nessas leituras, de modo que estas vivências criaram uma ligação eterna com Cecília Meireles.
18. Leu um livro que contribuiu para alterar o rumo de sua vida ou consciência, ou tenha de alguma forma influenciado os seus passos ou os seus dizer.
O livro Solte os Cachorros, de Adélia Prado mudou o rumo de minha vida.
19. Participa de associações ou agremiações (clubes, etc) de poetas ou escritores de literatura infantil?
Faço parte da AEI-LIJ
20. Poderia nos deixar um de seus poemas infantis?
Deixo MARTINA, do livro Ô de Casa! ( atualmente esgotado)

No canteiro
há um girassol
Dentro do girassol
há uma gota de orvalho
Dentro da gota de orvalho
há uma réstia de luz
Dentro da réstia de luz
há um grão
Dentro do grão
há um anel
Dentro do anel
há uma cantiga de roda
Dentro da cantiga de roda
a menina Martina
brinca uma ciranda
com sementes
beijadas de sol.

21. Que palavras deixaria como mensagem final aos leitores de PALAVRA FIANDEIRA?
Tomo a liberdade de imaginar que os leitores de Palavra Fiandeira sejam pessoas que se interessam por semeaduras poéticas, e que, em alguma seara estejam lançando sementes de arte. Então, com base nesta hipótese, deixo umas palavras do Eclesiastes que gosto muito:
Semeia a tua semente pela manhã e, de tarde, não cesse a tua mão de fazer o mesmo”.

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Marciano Vasques 
ESCRITOR E FUNDADOR DE PALAVRA FIANDEIRA