EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

sábado, 24 de julho de 2010

PALAVRA FIANDEIRA 37




PALAVRA FIANDEIRA

REVISTA DE LITERATURA
ANO 1- N° 37

NESTA EDIÇÃO:

Diretamente de Portugal:
ANA DE ORNELAS
Realização: Carmen Ezequiel

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SOMBRAS COMUNS
Entrevista a Ana de Ornelas

Por Carmen Ezequiel - PORTUGAL



Um dia, nas minhas andanças pela auto-estrada rumo até casa, surge-me a ideia: porque não um poema meu? Será que ainda saberia escrever? Será que sairia alguma coisa sentida?”
Ana de Ornelas


Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo. E que posso evitar que ela vá à falência. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da alma. É agradecer a Deus cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um “não”. É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta. Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia vou construir um castelo…”
Poesia de Fernando Pessoa

Poesia e psicologia. Unem-se na tênue linha do desentendimento racional e emocional. Enquanto um descreve um estado emocional ou a essência do que se vive, o outro entende esse mesmo estado e tenta, mesmo que por vezes impossibilitado, ajudar quem a ele se prende ou prendeu.
Sombras Comuns mudou um pouco nas suas palavras, oferendo-vos e relembrando um excerto da Poesia de Fernando Pessoa que, como em toda a sua obra, soube identificar a verdadeira essência do ser, emocional e racional.
Apenas as palavras se modificam, mantém-se o propósito, que é o do vos apresentar mais um fantástico Ser, que como ela própria diz “escrever é terapêutico” e que vive “em relação com a psicologia: alimenta a alma e a mente nesta reciprocidade consentida por ambas as partes”.
Aqui, entrevista-se Ana de Ornelas, psicóloga e poeta.
Psicóloga dos outros, poeta de si própria.
Aqui e agora, vos apresento Ana Isabel Rodrigues de Ornelas.

PALAVRA FIANDEIRA – Fale-nos um pouco da sua história de vida. Quem é Ana de Ornelas?
Ana de Ornelas – É sempre difícil falar de nós ou da nossa história de vida mas, enfim...sou eu!
Nasci em Lisboa há algum tempo e quando tinha mais ou menos 18 meses de idade, os meus pais resolveram, como era comum na altura, tentarem melhorar as suas condições de vida migrando até África, mais exatamente, até Angola.
Em 1975 vim completar o meu 15º aniversário a Portugal... A revolução de Abril apanhou-nos no meio…
Sem dúvida, uma altura complicada para muita gente; enquanto adolescente e estando até aí reduzida ao mundo de um Colégio Religioso em regime de internato, a mudança na altura foi extremamente complexa; não bastava estar a viver a ambivalência de uma adolescência, ainda me vi confrontada com uma realidade absolutamente desconhecida e assustadora.
Perdida neste imenso desconhecido que me trazia ansiedades e medos, investi, pela solidão e desencontro comigo e com o mundo, na poesia. Era algo onde me sentia confortável e onde conseguia colocar tudo o que não queria pensar alto com medo de o fazer.
Os elogios e os estímulos de quem eu permitia ler os meus poemas eram incentivadores. Até os de minha mãe que, de forma velada e sutil nunca deixava de acrescentar: “Não te esqueças que isso não dá dinheiro. Concentra-te nos estudos”. Às vezes, até desse tempo em que perdia a escrever, eu me sentia culpada…
Enquanto frequentei o 6º e o 7º ano do Liceu (atuais 10º e 11º), apaixonei-me pela Filosofia e pela Psicologia…
Habituada a um regime austero de um Colégio de Freiras, encontrar um ambiente de anarquia completa em contexto escolar, pelos tempos que se viviam, não ajudou, de todo, a promover um bom sucesso acadêmico.
Resultado, cheguei aos meus 19 anos e resolvi deixar de estudar…
Resolvi procurar emprego mas, a psicologia, já se tinha instalado definitivamente no meu Eu. A poesia, essa, estava declaradamente arrumada: eu não conseguia esquecer o fato de que, a poesia não dá dinheiro!
Depois de alguns empregos…, com 22 anos encontrei aquele que me deu estabilidade econômica… era bancária...
Entre o banco, a minha relação e mais tarde a maternidade, a vida foi correndo sem muitos sobressaltos, de uma forma mais ou menos planeada. A poesia continuava, pensava eu, absolutamente esquecida. A psicologia não…
Chegada a altura… - reunimos a família…, conversamos sobre este assunto, … e concluímos que apesar das perdas que esta mudança iria implicar estaríamos dispostos a correr esse risco. E assim, já com uns “aninhos” em cima, dei por mim a sentir o mesmo frio na barriga que me lembrava o meu primeiro dia de escola, algures perdido nas memórias de um passado longínquo: ali estava eu, naquele mundo acadêmico, a fugir das praxes, perdida de medo, no primeiro dia de faculdade, como trabalhadora estudante.
Após conclusão do curso instalei-me, com uma outra colega, num espaço privado e começamos…, a exercer clínica privada…
Com o passar dos tempos e sempre atenta ao contexto político e econômico, … e aproveitando-me das mudanças institucionais e, cada vez mais a querer investir na área da Psicologia, solicitei então a minha passagem à reforma e assim, desde inícios de 2007 que estou a tempo inteiro, entregue de alma e coração, às patologias dos tempos modernos.
Foi, na construção do meu site que do nada, a poesia volta a aparecer. Idealizando a página inicial pensei colocar um poema, entre tantos, de algum dos poetas portugueses que eu admiro. Era difícil a escolha… Um dia, nas minhas andanças pela auto-estrada rumo até casa, surge-me a ideia: porque não um poema meu? Será que ainda saberia escrever? Será que sairia alguma coisa sentida?
(…) Não resisti. Encostei o carro à berma, peguei na minha caneta, no meu bloco e escrevi. Ainda assustada por este despontar, li, reli, voltei a reler e gostei. Fazia sentido o poema. Dava vida ao lamento de todos nós em determinados momentos da vida…
Assim, nasceu o site. Assim, renasceu a poetisa...



PF – Vive da psicoterapia e vive com a poesia. Qual entrou primeiro na sua vida? Fale-nos um pouco de cada uma e da importância que têm em si.
AO – Sem me querer repetir... Claramente a poesia entrou primeiro na minha vida. Apesar de ser algo comum aos adolescentes; estes períodos (entre outros) de “escritores” e “poetas”, em determinado momento do seu crescimento, como uma forma de se encontrarem ou, até de rebeldia ou, de exorcizarem as suas dores; esse meu período marcado por tantas alterações importantes, sem dúvida, estimulou o meu lado mais poético. Há quem escreva sobre a natureza, o amor; outros, sobre a felicidade; outros escrevem porque escrevem; eu, olhando hoje as coisas com um olhar mais profundo que passa para lá do evidente, reconheço que a minha escrita já teria um sentido terapêutico; eu já escrevia para exorcizar a mágoa, a dor, a tristeza e o desamparo que acompanhava a minha dificuldade em aceitar os acontecimentos tão intrusivos ao meu EU, que me sugavam e limitavam, dos quais eu não era responsável (só queria ser adolescente) e mais, não tinha tido qualquer opção de escolha. E perdoem-me os poetas e poetisas que cantam outros temas, mas eu defendo que é na tristeza e na dor que o poema fica mais poema, que a obra fica mais completa, que a dor fica mais dor. E há cada poema mais intenso no tema.
Hoje, depois deste caminhar no deserto, tal era a falta de inspiração (ou medo de pensar a dor guardada, recalcada, trancada de um passado) reconheço mais do que nunca a importância que eu dou ao meu escrever. Escrever é terapêutico. Na escrita, permitimo-nos através das letras dar vida a emoções impregnadas até ao mais íntimo de nós, sem corrermos o risco de nos perdermos na incompreensão do nosso sentir. O papel é o confidente. O lápis ou a caneta, a batuta da musicalidade emocional.
A psicologia entrou pelas palavras de um professor de Filosofia no liceu e mais tarde pela própria disciplina. Entrou sem dar por isso, tal era o sentido que tudo que eu lia e aprendia diariamente fazia para mim.
Hoje, passado todo este tempo de investimento nesta área enquanto aluna e agora enquanto psicóloga, reconheço que a psicologia instalou-se definitivamente na minha vida. Como diz o Psiquiatra e Psicanalista António Coimbra de Matos “ o cérebro alimenta-se de informação; a alma, de relação”; eu vivo em relação com a psicologia: alimento a alma e a mente nesta reciprocidade consentida por ambas as partes.

PF – Escrever é uma terapia, um escape para os seus problemas? Ou, é uma abordagem ao estudo do sofrimento e problemas que ouve dos outros, para mais facilmente encontrar soluções?
AO – Escrever é terapêutico como qualquer outra arte! Não é uma terapia nem um escape para os meus problemas, nem uma abordagem com um objetivo de ajuda ao entendimento do sofrimento dos outros. Escrever, para mim, é terapêutico pelo espaço que o escritor dá a si próprio de, ficcionando, poder falar sobre algo que de outra maneira era-lhe extremamente difícil pensar, quase impossível. Dou um exemplo: muito recentemente decepcionei-me com uma amizade de longos anos e por dificuldade – dada sensibilidade do assunto – de comunicação entre nós, esta ficou perdida entre mal entendidos e certezas inconfessáveis. Impossibilitada de resolver por espanto pelo acontecido, escrevi a mágoa, a decepção e o sentido de perda de algo. Ao expor a comentários, a devolução feita pelo que liam, espantou-me pela consciência que eu fui tomando, de fato, da dor que tudo aquilo me estava a causar. Vivi-a através das letras. A dor deve ser vivida e sentida na íntegra. Não devemos mascará-la, relativizá-la e ilusoriamente dá-la por resolvida. Não. De todo. Deve ser sentida e chorada. Com o tempo as coisas vão sarando, lentamente, até poderem ser pensadas sem angústias e medos.
Cada vez que um paciente trás com ele a dor, mágoa ou tristeza, por perda de alguém, de algo ou até de uma relação, é na relação terapêutica, que vai sendo por nós trabalhada, que eu o vou ajudando a pensar a emoção, sem fugir a tudo o que possa sentir. Não procuro soluções através da escrita para os problemas que me trazem. As soluções são procuradas e encontradas a dois em cada hora que estamos. O que fica, às vezes, desperta também em mim um sentir idêntico mas, por motivos diferentes. A sensação de perda do objeto amado, pensado a dois, pode trazer com ele a recordação desse sentir e a forma como eu própria o fui trabalhando através da minha análise. Eu identifico a dor. Fica mais fácil descrevê-la. E é assim que nasce o que escrevo...



PF – Os portugueses estão doentes emocionalmente? Que “peso do mundo” os incapacita de serem felizes?
AO – Bom, sou levada a crer que o mundo está doente emocionalmente. Não só os portugueses.
A incapacidade do ser humano em ser feliz passará, quem sabe, pela perda e mudança de valores a que nós fomos sendo expostos. Ser feliz, hoje em dia, resume-se, quanto a mim, à quantificação de valores reais tidos pela aparência. Neste registro, vai-se perdendo parte da vida. Interessa o que em termos de valores reais, podemos capitalizar como um objetivo de felicidade; por exemplo: o carro XPTO, a casa com piscina, as férias num destino exótico, as roupas de marca; sinais externos de felicidade que não são senão objetos de mero prazer imediato e etéreo... pelo caminho vão ficando momentos de extrema solidão, não sentida pela aparente ilusão de posse de pequenas partículas de felicidade.
O “peso do mundo que os incapacita” não é senão o peso da sua própria incapacidade em gerir espaços mentais e momentos de extrema acalmia essenciais para o encontro conosco próprios.
Os adultos que me procuram, fazem-no porque se deparam com um infinito vazio de alma que os deixa órfãos do seu próprio EU. O peso desta realidade dobra-os perante a dor e a tristeza sentida que, sendo vivida a seu tempo, sem fugas para a frente, como costumo salientar, não é senão entendida, aceite, trabalhada e “arrumada” tranquilamente em nosso ser. Quando este falso bem-estar dá lugar a uma realidade diferente mas autêntica, fica-se perdido, sem rumo, vagando de forma aleatória pela vida e aí, às vezes doentes, tanto mental quanto fisicamente. No todo do nosso ser, entendo que haja uma correlação entre a mente e o corpo. A mente sofre, o corpo somatiza.

PF – A felicidade é um estado do Ser ou um estar de ser? Porque é complexo encontrá-la?
AO – Felicidade: estado da pessoa feliz; Feliz: que tem felicidade.
Estas são as definições no dicionário. Eu, não consigo ter uma definição. Quase que me lembra um produto. Felicidade: Compre! Dois em um! Felicidade/Feliz!
Se é um estado do ser ou um estar de ser? É mais um estado como qualquer outro que sendo mais um, num todo contribui para um estar Feliz!
Divagando um pouco, a complexidade em encontrá-la talvez passe por estar sempre tão perto e sem necessidade de ser encontrada que não reparamos e achamos que passamos o tempo a perdê-la e a procurá-la. Opino que o fato de me levantar todos os dias com uma enorme vontade de sorrir, olhar o sol, ouvir a vida, sentir o tempo na pele, só por si já é uma felicidade e como tal, um estado do ser em estar feliz. O estar viva é um presente diário para mim. O dar o bom dia à minha filha e ao meu marido e ter como resposta um sorriso ou, um amasso ou, um arrufo, porque foi cedo demais, é um momento a dois ou a três de felicidade. Ouvir música é um estar bem! Ver um concerto de alguém que gosto é um momento agradável e que me dispõe feliz. Ouvir os meus entes queridos e saber que eles estão bem e que estão ali quando lhes ligo, é um momento feliz. Perceber a mudança de comportamento nos meus pacientes trazendo-lhes isso equilíbrio e bem-estar, é um tempo feliz.
Tocar-me, sentir-me, ouvir-me, perceber-me, olhar-me é sinal que estou aqui e agora e é no silêncio do ruído do mundo que traz com ele momentos de autêntico prazer e felicidade que eu admito: por esses instantes, eu consigo ser e estar feliz!


Moinho em Ardido, Benedita, Portugal (fotografia tirada por Carmen Ezequiel)

PF – Vamos dar a conhecer um pouco do nosso Portugal aos leitores do Palavra Fiandeira. Com que cidade ou local em Portugal mais se identifica e porquê?

AO – Tenho imensa dificuldade em indicar uma cidade ou local de Portugal com a qual me identifique mais. Eu costumo dizer que se não tivesse nascido em Portugal, eu gostaria muito de nascer em Portugal!
É um país com imensos encantos espalhados de norte a sul e ilhas. O Norte, com a sua vegetação, geografia, história, monumentos, gastronomia, encanta-me no Inverno. De Viana do Castelo a Bragança; passando por Braga até ao Porto; começando a descer por Aveiro; olhar Coimbra enquanto se ouve o fado cantado por estudantes; passar o Pinhal de Leiria e lembrar a nossa história; percorrer Lisboa e deslumbrar-se com a cidade das sete colinas; entrar pela costa Vicentina e chegar ao Algarve e mergulhar nas águas cristalinas e temperadas… como dizia e repito, se não tivesse nascido em Portugal eu adoraria ter nascido em Portugal.


Nós, pais adultos, já não sabemos comunicar”.
Ana de Ornelas
PF – Esquecemos de comunicar com as nossas crianças. É somente isso que os pais adultos necessitam fazer? Reaprender a comunicar? Ou, reaprender a amar? Saber escutar?
AO – É. Os pais esqueceram-se de si próprios e da criança algures perdida, esquecida e arrumada dentro deles. Se não fossem eles vítimas desse próprio esquecimento, provavelmente entenderiam o dialeto dos seus filhos que sendo entendido por todos nós, a interpretação fica muito aquém da realidade sentida pelas nossas crianças, pelos nossos filhos. É neste hiato de tempo que se perde a comunicação. Ouvir, escutar, entender é uma arte. Sendo algo tão próprio do ser humano e do verbo comunicar, raramente conseguimos que isso aconteça sem que as palavras tragam consigo uma carga de conceitos, preconceitos e ideias pré-feitas que passam quase sempre por nós e nunca pelo outro. E assim, quando o outro fala, nós ouvimos aquilo que queremos ouvir e que entendemos como ouvintes. Nesta comunicação perdem-se mensagens distribuídas por partículas de letras que só o indivíduo entende. A criança, nosso filho/a, ainda consegue ser espontânea, autêntica e sem filtros! Nós, pais adultos, fomos perdendo esses adjetivos algures na linguagem aceite, permitida e autorizada pelo contexto social. Assim, quando o nosso filho se agarra às nossas pernas aos gritos, pedindo socorro pela angústia que sente ao separar-se, às vezes, o nosso comportamento passa mais por o sociabilizar do que propriamente entendê-lo, contê-lo e devolver-lhe a sua angústia pensada e tranquilizada. Não temos tempo e acima de tudo, temos o olhar do outro em nós, entendido como crítica.
Não acho que os pais tenham de reaprender a amar. Sempre que me procuram não tenho qualquer dúvida que por trás daquele gesto está um infinito amor pelo filho/a que me trazem. Talvez tenham é que reaprender a colocarem-se na relação dando muito mais tempo ao afeto, ao amor, do que ao prazer imediato que proporcionam aos seus filhos ao oferecerem-lhes compensações pelos momentos de ausência sentida como culpa.
Às vezes, a irritabilidade de uma criança passa por uma enorme carência de afeto e atenção. Parar, baixar-se ao nível do seu olhar e dizer-lhe: eu entendo que queres que eu te dê atenção, mas agora não consigo. Se esperares um bocadinho vou escutar-te, pode ser?
Não, não acho que os pais tenham de reaprender a amar. Terão, sim, quem sabe, de demonstrar mais o amor, através de atitudes e comportamentos que mesmo quando são firmes e irredutíveis são prova de um amor incondicional dando à criança uma sensação de confiança, segurança, proteção e importância, entre outros.
Um NÃO firme é um enorme ato de amor.

PF – Como estão as nossas crianças e os nossos jovens emocionalmente? Ultimamente que se falam de temas como o bulling nas escolas, contra colegas e professores; a complexa integração social nos mais variados grupos; o desrespeito para com os outros; assaltos a carros e estabelecimentos; o ser diferente…? Como serão os adultos de amanhã?
AO – A resposta ocuparia grande parte da entrevista. Acredito que a maior parte dos jovens ande carente, inseguro, perdido nesta imensidão de estímulos que os fazem querer tudo e sentirem constantemente um não terem nada e sobretudo com uma enorme carência de amor. Mas acredito também, que existem jovens seguros, respeitadores, conscientes da realidade, com valores elevados e que investem num futuro promissor, tanto ao nível de um bem coletivo como individual. E nesses, eu gosto de me agarrar e prever adultos de amanhã conscientes, responsáveis e sobretudo respeitadores pela individualidade de cada um. Sinceramente, espero isso.

Um NÃO firme, é um enorme acto de amor.”
Ana de Ornelas

PF – Podemos, através da poesia, chegar até à nova geração e engrandecer-lhes o espírito? De que forma podemos utilizar a literatura e como vê a mesma em Portugal?
AO – Carmen, seria tão bom conseguirmos chegar através da poesia à nova geração e engrandecer-lhes o espírito! “Estou a puxar a brasa à minha sardinha” como se deve notar... No fundo, toda a forma de arte engrandece o espírito de qualquer um de nós.
Chegar lá através da poesia, não é impossível, mas acredito que seja difícil. Os leitores da poesia, não querendo classificá-los como especiais (somos todos especiais), têm uma sensibilidade elevada que os diferencia do tipo de leitores que apreciam muito mais um bom romance, uma boa aventura de ficção científica, livros de ficção histórica, enfim. Há muito pouco seguidores de poesia no universo da literatura. Basta-nos ir aos grandes centros comerciais de venda de livros, … e, dificilmente encontramos um bom número de livros de poesia. Aliás, não há uma única bancada bem visível, dedicada exclusivamente à poesia. Parece-me ser indicador de algo. E se temos bons poetas: Mário de Sá Carneiro, Herberto Helder, Fernando Pessoa, Florbela Espanca e tantos outros...
Uma Editora de topo investir num poeta atual que se pretenda lançar no mundo da poesia é um cenário pouco provável.
Logo, não me parece ser, de todo, um tipo de literatura que tenha muitos seguidores e fãs como todo o resto de interesses literários. Ler poesia é pensá-la e interpretá-la sob um ponto de vista subjetivo, mas que em simultâneo tente perceber o ponto de vista do poeta ou poetisa, … Para a entender temos que parar, ler, pensar, interpretar.
Numa juventude em que a maioria se comunica por siglas ou letras com um vocabulário próprio; (quantas vezes eu não me vi aflita para entender o teor de uma mensagem enviada pela minha filha através do telemóvel?), em que a linguagem computadorizada é a mais usada escrevendo-se mais rapidamente do que se pensa, não se cuidando como se escreve; parece-me difícil, direi mesmo utópico pensar, que conseguiremos chegar até à nova geração e engrandecer-lhes o espírito através da poesia. Não têm tempo a perder. Os estímulos externos são bem mais importantes que os internos segundo os valores a que se foram dando mais atenção ultimamente.
Naturalmente estou a generalizar. Há um lado meu que acredita mesmo, que neste espaço do mundo que está muito para lá da minha janela haverão muitos jovens… que todos os dias despertam e ficam vidrados na poesia. Espero que sim. Sei que sim. As gerações seguintes serão prova disso.
Ultimamente, têm surgido na nossa literatura vários novos autores com estilos muito diferentes. Há qualidade em alguns, nenhuma noutros; reconheço que não leio tanto quanto gostaria porque o tempo que me resta dedico-o mais à leitura de obras ligadas à minha área de trabalho mas, quando por indicação me sugerem algo e leio, raramente consigo gostar e encontrar a qualidade que me faça estar em expectativa de nova obra. Serei eu mais exigente? Pode ser. A idade permite-me isso. Mas, seja pelo que for, só por agora, só por hoje é o que me leva a dizer sobre o estado da literatura no nosso país.
PF – Em que medida a internet e as tecnologias atuais beneficiam para o enriquecimento do povo português? Se cada vez mais as redes sociais de cada um se enchem de amizades e amigos virtuais, mas continuamos sozinhos e solitários? Com carências que nos dificultam o saber estar com o outro?
AO – A Internet e as tecnologias atuais beneficiam e enriquecem qualquer povo. Como as aproveitamos e como as usamos isso diz respeito ao espaço de cada um.
Em relação às redes sociais não vejo inconveniente nenhum no uso e abuso delas desde que tudo seja feito com equilíbrio e bom senso. Não me parece que tenham surgido para colmatar este nosso sentir solitário. Quando este estado se instala, não há rede social nem amigos virtuais que nos consigam tirar dele se não o quisermos mesmo e se assim for, basta sairmos do casulo e nos expor ao mundo lá fora.

PF – Que riscos se correm neste mundo virtual e relativamente aos direitos de autor, à rapidez da informação, disponível a qualquer pessoa, e facilidade em plagiar e imitar?
AO – Não sendo propriamente expert neste mundo virtual que menciona, reconheço que se calhar não estarei tão à vontade em responder a esta questão. Acredito que o problema não reside no conceito do mundo virtual mas em quem faz mau uso dele; e por mais que haja um controlo cuidado, uma supervisão apertada, haverá sempre alguém que não estando bem consigo próprio desrespeite e se aproveite do outro. Como se fosse da própria natureza humana...

PF – Ao longo dos tempos, o amor é abordado e retratado com distintas facetas. Na sua página – Ana de Ornelas: Psicoterapia (www.anadeornelas.com); define vários tipos de amor em sonetos variados. Porquê tantas definições para uma única palavra que é o amor?
AO – Bom: não serão tanto definições, porque amor é amor e a sua definição é universal mas mais, vários tipos de amor.
Neste mundo tão complexo dos afetos, a forma como nos colocamos neste terreno do amor tão sensível é, ao mesmo tempo, imprevisível e previsível. Lia um dia destes, de um autor recente,  Nuno Amado, Psicólogo Clínico, “Diz-me a verdade sobre o Amor”, algo com o qual concordei e ao fazê-lo, sorri com ternura: eram-me familiares as palavras usadas; o autor dizia que o amor é tudo e nada “...belo e banal... supérfluo e profundo...sério e ridículo” e que “é a pior e a melhor coisa do mundo... obsessivo, generoso, e invejoso...rico e pobre e arde e cura e mata e salva...”

Falar de Renovo
Olhar o medo,
Pensar a dor,
Sentir a alma,
Falar de amor... Olhar o vazio,
Pensar o escuro,
Sentir a calma,
Falar seguro... Olhar a certeza,
Pensar o presente,

Sentir o passado

Falar o futuro…
Ana de Ornelas

PF – “Falar de Renovo” é um poema que fala das emoções que todos escondemos dos outros. Ver, compreender, sentir e falar são os verbos para as aceitar e ultrapassar? Fale-nos um pouco sobre o mesmo.
AO – Este poema está impresso num quadro que de uma forma cuidada foi colocado no meu espaço de atendimento. No fundo, ele reflete aquilo que todos os dias acontece entre aquelas quatro paredes da sala: um profundo encontro com o self de cada um.
Ser capaz de olhar bem fundo de nós, compreender, sentir e falar, são os verbos para aceitar e ultrapassar, não as emoções que escondemos dos outros, mas as emoções que escondemos de nós próprios. Enquanto olhamos de frente os medos e fantasmas que angustiam, vamos estabelecendo a ligação com um passado, com uma história de vida, a nossa própria história. É esse trabalhar, esse colocar na relação que fala o meu poema: quando eu olho e penso a dor, sinto a alma e ao sentir, vou ser capaz de falar amor; quando permito olhar o vazio do meu eu e pensar o escuro da minha existência, trago com isso a calma da minha alma e falo com segurança sobre os meus afetos; ao lembrar e pensar um passado, consigo olhar a certeza de um presente e como tal, sonhar um futuro.

PF – “Eu amparo e, feita forte, limpo com ternura a lágrima, de quem chora a própria morte”. Quem é mais forte: a Ana de Ornelas Psicoterapeuta ou, a Ana de Ornelas poeta? Que armas cada uma utiliza no dia-a-dia?
AO – As duas são fortes... talvez a Ana poeta seja menos forte, não porque não o seja, mas porque se permite muitas vezes não o ser e quem sabe, talvez por isso, afinal de contas seja a mais forte...
A Ana poeta não usa armas ou, por outra, as letras feitas palavras, são as suas armas, acredito que sim. Através delas comunico com a linguagem do coração e da emoção.
A Ana terapeuta usa as armas e as ferramentas apreendidas enquanto aluna, solidificadas enquanto na prática, resultantes de uma aprendizagem constante que passa pela atualização através da leitura e do conhecimento de tudo aquilo que possa adquirir, mais a minha própria análise e a supervisão quinzenal. O resto, são os olhos dos meus pacientes que me dão a humildade de reconhecer que, todos os dias cresço enquanto terapeuta por aquilo que todos os dias eles me dão.

De mim... para si

Há olhares doridos, sofridos
E baços, sufocados pela dor...
Há gestos cansados, esgotados,
Gélidos e carentes de amor...

Há um universo de emoções
Trancadas, calcadas, recalcadas,
Pelo pânico das sensações
Que despertam, quando pensadas.


Há um alento pela dádiva,
Na procura de suporte,
Quando de uma forma cálida


Eu amparo e, feita forte,
Limpo com ternura a lágrima,
De quem chora a própria morte!
Ana de Ornelas

PF - Fale-nos de uma obra ou de um autor que a tenha influenciado ao longo da vida.
AO – Tudo me influenciou. Não tenho um autor ou obra que tenha vindo comigo desde sempre, não. Em cada patamar da minha existência, em cada estágio de crescimento fui me identificando e deixando influenciar pelas possibilidades de leitura que fui tendo e como tal dos autores que fui lendo.
(…) No campo da poesia, sempre admirei Florbela Espanca, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e dois poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles…
Paixão recente, surgida após ter recebido o Prêmio Nobel, por Saramago: “O ano da morte de Ricardo Reis”, “Ensaio sobre a cegueira”, “Todos os nomes”, “Jangada de Pedra”, um rol imenso de títulos.
Há um escritor estrangeiro do qual me considero fã, tal como de Saramago, que é Gabriel Garcia Marquez. Dois títulos muito marcantes para mim: “Cem anos de solidão” e “ Amor em tempo de cólera”. Um título único lido desse escritor mas que me deixou inebriada com o cheiro da sua história foi Patrick Süskind, autor de “O Perfume”.
Há um todo que me preenche e um nada que me completa. Assim o fizeram as obras que li.


PF – Quer deixar alguma mensagem para o leitor do Palavra Fiandeira?
AO – “… Na escrita, permitimo-nos através das letras dar vida a emoções impregnadas até ao mais íntimo de nós, sem corrermos o risco de nos perdermos na incompreensão do nosso sentir. O papel é o confidente. O lápis ou a caneta, a batuta da musicalidade emocional…”
Sejamos nós sempre capazes de conseguir todos os dias compor, pelo menos, uma palavra e dar-lhe a musicalidade emocional que ela merece: “Felicidade…”


Quero expressar o meu apreço e agradecimento a Ana de Ornelas pelo tempo que nos disponibilizou, numa altura em que o seu se encontrava bastante preenchido.
Mas, esta entrevista, para além da sua importância óbvia, que é a do indivíduo pela sua individualidade é, como menciona Carl Rogers (in Tornar-se Pessoa), detentora de um enriquecimento em que me/nos permite “abrir canais através dos quais possam comunicar os seus sentimentos, a sua particular percepção do mundo”.
Assim são as palavras de todos aqueles que fazem o Sombras Comuns e o Palavra Fiandeira.
Aqui, fala-se de tudo e de nada.
De tudo o que somos.
De nada que ninguém é.

Carmen Ezequiel
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Realização: CARMEN  EZEQUIEL


Carmen Ezequiel é poeta, escritora, cronista, humanista, ativista cultural, correspondente e colaboradora de PALAVRA FIANDEIRA em Portugal

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3 comentários:

  1. "Gostei muito...as questões foram muito pertinentes e as respostas muito coerentes. Entre a psicóloga e a poetisa parece existir um mais interessante ser...e valioso para os nossos tempos. "
    Maria Amante

    "Está muito interessante e estou a gostar.
    Deixo só um reparo na legenda da foto.
    "Moinho em Ardido, Benedita, Portugal (fotografia tirada por Carmen Ezequiel)". O Ardido pertence à freguesia de Turquel e nada tem a haver com a Benedita (penso eu) a não ser pertencerem ao mesmo concelho. Para quem conhecer não ficar com a ideia de existir um erro e quem não conhece fica com informação errada."
    Rodrigo Tomás

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  2. Gostei muito…

    Ana de Ornelas – Uma pessoa única e linda. Tenho tido o privilégio de ir acompanhando os poemas que ela escreve e estou sempre prontinha para ler mais um.

    Nunca deixes de escrever.

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  3. Querida Ana,

    Não me surpreende em nada o que li sobre quem és,o que fazes, o que escreves o que queres da vida e, até, também o que pensas e sentes...

    ...sou tua mãe, sinto com o coração...

    Conheço a tua generosidade, sensibilidade e afectos, a dedicação ao trabalho que desenvolves como Psicóloga Clinica, que para ti é quase uma missão.

    A tua condição poética, que muito me internece e comove, sei de quem a herdaste. O teu avô, lá onde Deus o tenha, estará muito orgulhoso.

    Mas, ainda mais orgulhosos estão os pais que te admiram e amam...

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