EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

PALAVRA FIANDEIRA - 50

PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA LITERÁRIA
Revista Digital de Literatura
ANO 2 - Nº 50 - 30/DEZEMBRO/2010

NESTA EDIÇÃO:


PAULA LARANJEIRA

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1. Quem é Paula Laranjeira?




PILS: Sou professora, blogueira, e como disse um amigo, a entrevistada. Para os outros sou de fácil definição (creio que nem Pessoa conseguiu ser tantos “eus”), porém, ainda estou tentando saber-me neste mundo, pois quando achava que me sabia em todos os cantos e recantos, me vi confusa, sentada no meio de um labirinto, a procura sempre, do fio de Ariadne.

2. Paula Laranjeira, formada em Letras, intensa atividade cultural, vivendo no interior da Bahia, como é viver longe de uma metrópole?

PILS: Intensa atividade cultural? Acho que não. Se pautarmos o olhar em (pré) conceitos diremos que não. Até porque nestas paragens a cultura, mesmo a local é pouco valorizada. Para se ter uma ideia, não temos teatro, cinema (já tivemos), livraria ou centro cultural. Temos mais de 130 anos de emancipação política, aproximadamente 30 mil habitantes e o pouco que nos resta são casarões históricos se perdendo pela ação do tempo e do homem. Éramos portadores de vários elementos culturais como festa de Reis, Cavalhada, a Via Sacra Tradicional entre outros. Coisas que já não existem mais. O que nos sobra é uma biblioteca municipal pouco frequentada e com acervo pequeno . Além de uma Fundação cultural que está parada. Então imagine como é olhar tudo isso e depois, para as infinitas possibilidade culturais de uma metrópole. Cada convite que recebo para eventos, lançamentos de livro, peças teatrais, filmes, congressos em minha área de estudo e interesse  deixam - me em “parafusos”. Mas tento reverter a situação com leituras e passeios culturais pela “net”, especialmente na blogosfera, além de fazer divulgação à distância.
Por outro lado, à medida que vou conhecendo, lendo e refletindo, acabo lançando novos olhares para este meu sertão, e eis que ele fica mais colorido, mais rico e muito mais fértil. Às vezes, encontro na gente e seus falares, os costumes, o ambiente e os seres do amigo Guimarães Rosa, do Graciliano, da Rachel de Queiróz, do atual Aleilton Fonseca, entre tantos outros. Nisso meus olhos “babam” como os dos bois do Guimarães e minha alma transforma pela alegria de saber-me parte disso. Tem dias que a Cora Coralina e seus quitutes invadem este lugar na poesia de vida e na cozinha de algumas mulheres, entre elas, minha mãe. Claro que muitos outros nomes/autores frequentam este sertão a partir das minhas leituras e releituras, não apenas os que falam dele, mas inúmeros outros.

3. Desenvolve um intenso trabalho de resgate e preservação da cultura autêntica em seus retalhos poéticos, divulgando texto de Ariano Suassuna, Luiz Gonzaga, a melhor poesia e ainda escreve sobre a Literatura Infantil. Como vê o esfarelamento cultural tão apreciado e divulgado pelas mídias?

PILS: Quando se sabe que por trás de tudo há uma intencionalidade baseada no interesse econômico, e mais que isso, na necessidade de poder absoluto de alguns indivíduos, fica fácil desconfiar de tudo e todos. Tenho visto há algum tempo na televisão e nas rádios a propagação de valores que têm mudado profundamente a sociedade e a “solidez” cultural. Primeiro há uma severa mudança nos valores familiares, onde tudo é permitido e a única lei é o “sim”. Posteriormente há o enfraquecimento qualitativo na educação, fator que nos torna mais maleáveis. E por fim, o “tiro de misericórdia”, o esfarelamento da cultura. Aí pergunta-se: o que sobra? Bem, sobram indivíduos sem valores, sem conhecimento e condição de interpretação e análise dos fatos, além de desprovidos de qualquer conhecimento cultural que o fortaleça enquanto coletividade. E sem nenhum bem simbólico que lhe pertença, “essa” gente, na qual também me incluo, facilmente se deixa manipular, se torna consumidor ativo e desenfreado. O que gera lucros e poder para uma pequena minoria.
Ou seja, esse esfarelamento cultural é algo necessário e parte de um processo que aniquilará de vez o espírito dialético tão necessário a uma sociedade que prima pela democracia e igualdade.

4. A qualidade musical descendo ralo abaixo, a decadência visível nas letras das chamadas canções e o império do dinheiro na sociedade do espetáculo estão entrelaçados com a decadência ética na política. De que forma a arte poderá restabelecer o padrão estético mínimo para reativar as consciências?

PILS: A arte é o freio. Dias atrás vi uma reportagem na TV, e isso é coisa incomum, que mostrava o trabalho com música clássica numa comunidade carente no Rio de Janeiro. Se antes tínhamos naquele lugar, crianças e jovens sem perspectivas, sem a consciência do seu estar/ser-no-mundo, agora eram jovens entusiasmados, com sonhos, valores, cultura e visão de mundo diferenciados. Provavelmente ou certamente os participantes deste projeto foram “infectados” pela grandeza artística que os encaminhará para o eterno “coma” da consciência. E o mesmo acontece com toda e qualquer pessoa que se insere no meio literário, nas artes plásticas, na dança, no teatro, entre outros. Dessa forma, pode-se também crer a arte como via de transformação. Como diz Oswaldo Montenegro em “Metade”, “Que a arte nos aponte uma resposta / Mesmo que ela não saiba”. Sabe-se que reativar a consciência não é a intenção nem a função da arte, mas não deixa de lhe ser um papel intrínseco. Aí pergunto: quem vai querer promover esta tomada/retomada de consciência através da arte? Quem vai querer, como diz a minha mãe, “criar cobra para ser picado depois”?

5. Que comentário faria sobre a decadência nas artes, na música, sobretudo a música dirigida aos jovens, a forma de arte que atinge mais diretamente a juventude?

PILS: A contra gosto, já ouvi muita coisa: axé, forró, funk, sertanejo, pagode e quase sempre com letras vazias, mensagens estereotipadas, possibilitando a aquisição de valores errôneos, especialmente no que se refere a relacionamento amoroso e sexo e às mulheres. Creio que a música tenha contribuído, em grande parte, para a formação de muitos jovens, por tal, a qualidade da música influenciará de forma positiva ou negativa este ouvinte. Toda geração lida com estas duas possibilidades musicais: a vulgar e a mais refinada, mas penso que nunca antes tenha sido tão direcionada ao esvaziamento intelectual e reflexivo como agora. Porém, também se percebe que muitos destes ouvintes têm fugido desse tipo de música, buscando em autores “das antigas” um repertório mais significativo, o que tem provocado muitas releituras e regravações de músicas do século XX, por exemplo.

6. Nos fale sobre Pesponteando: Retalhos Literários. 

 

PILS: Meu blog! Meu lugar no mundo. Neste dezembro completa dois anos. Nasceu objetivando aniquilar meu vazio. Eu tinha terminado a faculdade e sem absolutamente nada para fazer, apenas alguns livros, quatro anos de estudo e um computador. Tive medo de enlouquecer diante da possibilidade do “nada”. Aí o pari num dezembro chuvoso, pois aqui ainda chove. É um menino ingênuo que muda seu discurso a cada dia, pois todo amanhecer traz novos conhecimentos, e consequentemente, maturidade, reflexão, crítica e autocrítica, o que se reflete em mudança constante, ou melhor, metamorfose. O Pesponteando tem de tudo um pouco, sempre relacionando à arte e cultura. Neste meu pedaço de chão virtual vou tecendo alguns tecidos em meu tear, vou juntando uns retalhos a outros, cozendo à mão ou à maquina novas peças, bordando em certos tecidos bem ao modo da minha mãe, só que meu tecido é o texto, minhas linhas são as palavras, minhas agulhas são ora a caneta ora o teclado.

7. É formada em letras e atua na Educação, no Ensino Médio. Como vê a produção atual de Poesia com o advento da internet como um espaço democrático e infinito? Tem poeta demais no mundo?

PILS: Talvez tenha poetas de menos. Com o nascimento do romance a poesia perdeu espaço, já que os leitores, provavelmente pela formação, acabam encontrando mais “facilidades” de compreensão do conteúdo na prosa. Já o leitor deste gênero, a poesia, muitas vezes pauta suas leituras apenas em produções contemporâneas, se afastando de poetas e produções de outros tempos. Além disso, os produtores ou pretensos produtores de poesia, em grande parte, são leitores de poucos poetas e gêneros, o que acaba refletindo em suas produções certa “pobreza”. Os textos são quase circulares. É por isso que penso que temos poetas de menos, há muita gente escrevendo, mas poucos com grandiosidade. Porém, e isso é quase uma contradição ao que acabo de dizer, tenho observado que a internet além de revelar muita poeira embaixo do tapete, também tem revelado pó de ouro. Tem muita gente boa, com boa poesia se mostrando nas janelas da rede, fato que torna a internet uma ferramenta positiva e democrática não só por trazer os tesouros desconhecidos, mas por possibilitar o acesso a livros, bibliotecas, textos raros, entre outros, a quem busca fomentar e enriquecer o intelecto.

8. Mário Quintana, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Castro Alves, Sidónio Muralha, Drummond... A poesia ainda é necessária no mundo atual, tão midiático e dominado pelo imediatismo consumista desenfreado?

PILS: Certamente sim, pois além de ser freio, ela é luz. E quem não precisa da luz? O que noto é que não há um poeta ou um leitor deste e de outros gêneros literários que não seja um portador ativo de consciência. E o portador da consciência é avesso ao imediatismo e ao consumismo. Falando em consumismo, é interessante colocar como as pessoas buscam no ato de consumir freneticamente o lugar/estar da felicidade, é onde se encontra o prazer. Porém, há quem consiga o mesmo prazer em um livro. Desta forma percebemos que estamos estimulando hábitos errados. Seria revolucionário a mídia propagar o consumo de livros, mas livros com L maiúsculo. Porém isso não acontecerá, pois as TVs perderão seus telespectadores. E outros meios midiáticos como algumas revistas, perderão seus leitores.

9. Como vê a blogosfera? Atribui ao blog importância no resgate de valores artísticos?

PILS: Quando comecei a perambular pelos blogs, confesso que fiquei assustada. Era/é tanta coisa que às vezes tentando me achar, acabava me perdendo para logo em seguida me achar novamente. A blogosfera, termo ainda novo para mim, é um espaço de todos, de todas as manifestações, de todas as artes. Há algum tempo atrás se fazia pesquisa em livros, porém eram poucos e com informações limitadas, hoje há uma janela escancarada para o mundo, infinitas possibilidades, especialmente no que se refere às artes. Tomo como exemplo a Literatura de cordel, antes restrita ao nordeste, hoje está ao acesso de todos na blogosfera. A internet traz essa maravilha: o descortinar daquilo que era escondido, acessível a poucos. Num clique a democracia se instala. Às vezes, alguém cria um blog para culinária, mas acaba visitando e sendo visitado por blogs/blogueiros que tratam de poesia, contos, musica, dança, artes plásticas...e o que era desconhecido de alguns vai se espalhando. Claro que nem tudo possibilita o resgate de valores artísticos, há espaços que acabam atrapalhando com informações equivocadas, mas no geral tem muita coisa boa.

10. Seu blog está recheado de pinturas que abordam bordadeiras e costureiras. Como é para você esse simbolismo? Qual o significado dele em sua vida?

 Vicente Romero
No blog Pesponteando: Retalhos Literários

PILS: Não me lembro ao certo da primeira vez que vi alguém com tecido e agulha. Mas este ato sempre movimentou alguma coisa em mim. Na condição de observadora do sujeito que movimenta os elementos do universo têxtil, sou capaz de recitar uma poesia concreta de imagens que trago desde a infância. Me lembro de tia Eridalva com o seu tear, a roda de fiar, o fuso, o descaroçador e o algodão. Era o básico para a mágica da construção do tecido.
Também tenho a minha mãe e sua velha máquina de costura. Muitas vezes sentava-se à máquina de costura como a Clarice Lispector à máquina de escrever, construindo no lugar de textos, colchas almofadas, tapetes: uma espécie de texto feito com tecidos. Eu adorava ficar olhando, e ainda o faço algumas vezes, quando ela faz consertos em alguma peça de roupa ou outra coisa.
 Lembro - me também de várias vizinhas costureiras. Sempre gostei de frequentar suas casas, ficar ao lado da máquina observando o vai e vem da agulha, a linha, a tesoura e a nova peça que surgia. Era tudo tão lindo!
Já na condição de sujeito que trabalha com o tecido tenho certa experiência. Primeiro com as roupas de bonecas, ainda me lembro do gosto de costurar embaixo da mesa num dia chuvoso algumas roupas para as escassas bonecas. Depois, como não conseguia manipular a máquina, aprendi a bordar com pontos diferenciados: cruz, corrente, cheio, etc. E pela necessidade de reformar algumas roupas também bordei com miçangas e lantejoulas.
Mas foi na faculdade que veio o grande encontro: a costura e o texto. A comparação do texto com o tecido. Não me recordo o autor que faz essa analogia, mas foi/é algo que fica sempre se movendo em mim enquanto escrevo.
As costureiras, as bordadeiras, sempre estiveram presentes em minha vida, mas agora a costura é feita com as letras, as frases, e o papel em branco dá lugar a esta nova tessitura. Me encontrei... e tento ser uma tecelã das palavras, por isso as imagens no blog e todo o contexto sempre chamando a atenção para este universo.

11. Em meio ao desmanche da cultura, você mantém a coerência e a persistência no sonho de uma vida mais autêntica. De que forma, em nível governamental, seria possível contribuir para mudanças no quadro atual que, social e culturalmente, está dominado pela vulgarização via meios de comunicação?

PILS: Com educação de qualidade. Eis o único meio de cogitar mudanças para uma sociedade, pois a que temos é insignificante para FORMAÇÃO do indivíduo, apesar de ser ideal para “enformação”. Estamos produzindo nas escolas objetos em larga escala, produtos manufaturados, em uma fôrma, quando o que deveríamos fazer é justamente o contrario: tirar da fôrma, dar liberdade de pensamento, estimular o diálogo, estabelecer o olhar crítico e reflexivo como meta, proporcionar meios para a aplicabilidade do aprendido no cotidiano, promover a revolução pelo direito de ter valores e vivê-los... Mas os governos ou sei lá quem, primam por outras metas.

12. Aprecia literatura Infantil, certamente. Ela, essa forma literária, acredita que seja apenas para crianças?

PILS: Por algum tempo me limitei a este achismo: literatura infantil é coisa de criança. Mas tenho revisto muitos conceitos e este é um. Estudei um pouco de literatura infantil, e ao fazer isso entrei em contato com alguns textos, busquei os que havia lido na infância e adolescência. Acabei reconstruindo o gosto por esta especificidade literária, aguçando o olhar para várias questões antes ignorada em face ao preconceito etário e, simplesmente, me encantando. Vira e mexe aparece algum livro infantil aqui em casa, e tenho alguns na prateleira. Pena que o livro infantil esteja sendo substituído pelo filme com histórias infantis. A grande maioria dos pais compra DVD para os filhos quando poderia estar comprando livros.

13. Há um livro que possa citar que tenha influenciado de alguma forma na sua vida ou maneira de pensar?

PILS: Passei por momentos difíceis: hospitais, cadeira de rodas, desistência dos estudos, etc. E num destes períodos passei a ver muita TV, era uma forma ocupar a mente e esvaziá-la ao mesmo tempo, até que uma prima insistiu para que eu gastasse meu tempo com leituras. Pois bem, ela me emprestou alguns livros e entre eles estava Meu pé de laranja lima. Foi a grande descoberta da minha vida: o livro era vivo e podia mexer comigo, fazer rir ou chorar, pensar. Foi a porta de entrada para outras leituras: por isso tem muita importância em minha vida, já que a leitura possibilitou a descoberta de outros mundos. Tem uma frase do Mário Quintana, que gosto muito. Diz assim: Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livrosmudam as pessoas”. Pois é, o livro fez grande mudança em minha vida e eu quero que esta mudança se estenda ao mundo.
Claro que existem outros livros que contribuíram para a mudança de alguns pensamentos/partes de mim de maneira mais objetiva, mas tudo começou com este, já que tudo que li antes ficou restrito ao papel.

14. Participou como convidada de Palavra Fiandeira escrevendo um texto sobre Afro-brasileiros. Como vê atualmente a questão do racismo no país? Ou o Brasil está passando por uma transformação cultural?

PILS: O racismo está muito bem enraizado em nossa sociedade. Constantemente agredimos alguém por causa dessa pretensa superioridade de uma raça sobre a outra, sendo as maiores vítimas, os negros. Claro que nem todo mundo discrimina alguém pela cor da pele. Tem gente que diz assim: Não sou preconceituoso, pois tenho amigo negro (Amizade é uma coisa. Preconceito é outra, vale lembrar). E certamente este indivíduo não segregue ninguém, mas sei lá porque vem dois caras na rua, de forma suspeita. Qual causará mais insegurança? Quase sempre é o negro. Crescemos ouvindo que o negro não presta para nada, que é mau. Vários outros exemplos podem ser dados. Nesse sentido, se percebe que ele não age de maneira pensada, mas algo inconsciente, algo que está tão forte que não consegue controlar. É muito comum ouvirmos dizer que no Brasil se vive uma democracia racial, porém tal afirmação é uma forma de esconder o que é evidente: o preconceito racial é forte nesta e em outras sociedades. Mas o Brasil vem avançando na busca por sanar o racismo. Algumas políticas publicas, o trabalho de grupos afro-descendentes, um maior reconhecimento da literatura com temáticas afro e a militância quase isolada de alguns professores, o que se mostra eficaz, já que a intolerância deve ser revertida durante a formação escolar, e creio que nas séries iniciais seja mais profícuo.
O banimento do preconceito racial é algo a ser pensado a longo prazo. Planta-se a semente hoje para colher os frutos daqui uns trinta ou quarenta anos. O que estamos vendo hoje são os frutos plantados a partir da década de 70, no século passado.

15. Como vê a situação da mulher no contexto atual da decadência cultural?

PILS: A mulher tem sido uma forte. Primeiro ela luta por direitos iguais entre homens e mulheres. A duras pelejas consegue seu espaço como profissional, leis que assegure segurança e proteção contra violência doméstica numa sociedade que culturalmente prima a desvalorização da mulher, quer seja através de música (só as cachorras, minha eguinha pocotó, dói um tampinha não dói, Amélia é que era mulher de verdade, etc.) quer seja na TV ou nos cinemas, que entre seus destaques investe na mulher como objeto sexual. Noto, no entanto, que grande parte do problema está justamente na liberdade que a mulher conquistou. A grande maioria das mulheres não soube administrar essa “liberdade”, e a mídia sabendo-nos uma sociedade patriarcal e machista tem investido cada vez mais para que esta liberdade seja confundida com libertinagem. Dias atrás passou na rede Globo uma série intitulada As cariocas, fiquei impressionada como apresentaram a mulher carioca-brasileira: promíscua, sem valores, pronta para consumo. O problema é que esta imagem estereotipada não circula só em nosso país, mas excede as fronteiras nacionais.
No entanto, mesmo sendo “apedrejada” ela se encontra de forma engajada pela restauração e revigoramento da nossa cultura e pelo direito pleno de ser mulher. É ela que se coloca em ONGs, em grupos variados, é quem mais se dedica aos estudos, o número de professoras a implantar em sala de aula discursos, críticas e reflexões em prol da cultura é enorme, sem contar as lutas passadas.

16. Como vê o fato de um escritor de América Latina ganhar o Nobel de Literatura? Acredita que a voz da literatura, isto é, de seus representantes, possa de alguma forma influir no andamento das mudanças políticas ou culturais em nosso Brasil?

PILS: Apesar de já termos outros ganhadores deste prêmio ( Gabriela Mistral em 1945 - Chile, Pablo Neruda em 1971 - Chile, Gabriel García Márquez em 1982 - Colômbia) fiquei surpresa quando soube. Pensei: olharam para estas “bandas” de cá?! Somos quase animais aos olhos do mundo (EUA e Europa), incivilizados, sem cultura, sem “um monte de coisa”. E de repente alguém vira e diz que temos nestas paragens alguém que escreve de forma significativa a ponto de merecer o Nobel de Literatura. Meus Deus!, então somos bem melhores e nem sabemos! Sim, não sabemos que somos bons. Conheço um monte de gente que lê todos estes Best-sellers lançados lá pelos “States” e não conhecem nada da literatura brasileira, nem a clássica, nem a atual, canônica ou a marginal, além de desconhecer qualquer livro que não seja indicado pela Veja ou outra revista.
Porém, sobre a influência da literatura em nosso país, já fui mais otimista com relação a isso. A não ser que os autores clássicos ressuscitem, porque fora da academia e de alguns grupos sociais, a maioria das pessoas não conhece muitos autores para se deixarem influenciar por ideias e pensamentos de mudanças políticas e/ou sociais que estes exponham. Conhecemos poucos autores vivos de expressão na literatura, e não é pelo fato de não existirem, é pelo fato de não nos apresentarem, de limitarem a possibilidade de conhecer estas figuras. E mesmo conhecendo, a impressão que se tem é que nós os queremos mais como escritores de uma realidade no papel, que até se parece com o nosso mundo físico, mas que está restrito ao texto. Exemplo disso é o Vargas Llosa, aclamado com o Nobel de literatura este ano, com participação política no Peru, mas quando se candidatou ou apoiou candidatos à presidência do país não foi considerado apto nas urnas. No Brasil, um país que elege um palhaço analfabeto funcional como seu representante num cargo político, creio que se candidatássemos um grande nome atual da nossa literatura ou teríamos vitória com todos os votos válidos ou derrota total. Melhor não arriscar!

17. O mundo tecido pelos blogues, a infinita rede, a internet (Será afinal a biblioteca profetizada por Borges?), enfim, o mundo virtual, terá sobrevivência no futuro:? Irá se expandir com o tempo?

PILS: O que a gente tem em possibilidades na internet hoje é o mínimo se comparado àquilo que o futuro nos reserva. Eis nossa velha enciclopédia dando lugar ao que se configura nas redes. Borges fala de uma biblioteca fazendo analogia com a torre de Babel, infinita, chamando atenção para questões indecifráveis em línguas variadas. Se esta não é a biblioteca do Borges, falta pouco para ser, pois o que estamos vendo hoje em possibilidades é apenas uma ponta do iceberg que no futuro se porá à mostra.

18. Falando em sobrevivência, o que tem a dizer sobre o livro de papel?

PILS: Penso que o livro tenha sido uma das mais geniais criações do homem, pois democratizou o saber, e por mais que se profetize o fim do livro de papel não creio que isso aconteça. Claro que o e-book tem sido muito utilizado, possibilita a muitos o acesso a certas leituras. Mas ter o livro na mão, folheá-lo, sentir seu cheiro... é algo que não pode ser substituído.

19. Há um grupo de poetas de qualquer tempo e idioma, que para você seja representativo da poesia mais autêntica e transformadora de corações e consciências? Poderia citar alguns nomes?

PILS: Confesso que me dou mais à prosa que a poesia. Mas gosto dos poetas que surgiram com e a partir do Modernismo. A liberdade de estilo, formas e conteúdo deu mais chances para quem escrevia sem seguir a tendência ditada, por exemplo, pela Europa ou por determinados grupos daqui.
Estudando a historiografia da nossa literatura percebi que mesmo sendo bom poeta, se não seguisse a tendência, muitas vezes acabava sendo marginalizado. Se bem que ainda hoje temos gente sendo colocada num canto por questões regionais. Tem muita gente que acaba indo para o Rio de Janeiro ou São Paulo para alcançar o reconhecimento literário, pois é necessário fazer parte do eixo Rio-São Paulo. Após o Modernismo surgiu espaço para inventar e reinventar poesia.
Alguns nomes brasileiros deste período que conheço por leitura e que destaco: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Vinícius de Morais, Murilo Mendes e Cecília Meireles. Estes me restringindo em um tempo e Língua.

20. Parece ser uma pessoa feliz com o que faz. A felicidade está no fazer?

PILS: De fato sou feliz. Demorei muito para saber, naturalmente, o que era felicidade. Ficava à espera de algo surreal que chegaria com isso ou aquilo, que teria que TER , que teria que SER... Uma busca constante! Com a maturidade percebi a felicidade num conjunto de pessoas, de realizações e de situações. Ela era/é algo grande, que mesmo em face de alguma situação difícil ou triste não se desfaz. Mas o arremate final da minha felicidade está no FAZER. Trabalhar, ler, estudar, aconselhar, escrever... Minha suprema felicidade.

21. Há um alastramento de sites de relacionamentos e no entanto, as pessoas, de um modo geral, estão cada vez mais isoladas; predomina, mesmo que vagamente, uma estranha sensação de solidão na multidão. São questões do mundo virtual e de uma sociedade individualista. O que pensa sobre isso?

PILS: A maioria das pessoas busca se exibir, quer sair do anonimato; querem mostrar o quão maravilhosas e únicas são, por isso muitas mensagens, inúmeras fotos, centenas de comunidades, mas poucos vão além disso. Não há o aprofundamento da amizade, falta olho no olho, contato de pele, cheiro. E isso é imprescindível.
Cada um no seu canto, sem o risco de ser incomodado sem permissão é o “barato” dessa nova forma de se relacionar. Porém, nunca sabemos quem está do outro lado do monitor. Às vezes há o fingimento dos dois lados, e isso causa medo e, de certa forma, contribui para o sentimento de solidão e maior isolamento social. Claro que estamos falando de uma parcela de internautas que trocam a vida real pela virtual.
No entanto, há grupos que fazem percurso contrário utilizando as redes sociais como ferramentas de encontro, e não apenas como ponto exclusivo de encontro. Quando isso acontece, o isolamento social é reprimido e novos grupos de convivência acabam surgindo. Confesso que tenho experimentado os dois tipos de convivência com amigos. Mas, no meu caso, e falo isso por causa da minha deficiência, as amizades, reais ou virtuais, são sempre proveitosas na quebra do isolamento social.

22. No dia da absolvição de Michael Jackson morreu o poeta português Eugênio de Andrade. Nem precisa dizer qual evento ganhou as mídias do mundo. A cultura Pop regida pela mídia e a solidão da leitura conviverão para sempre?

PILS: Seria preciso uma revolução para que a leitura deixasse de ser um ato solitário. Mas onde nasceria este herói que faria do livro na mão do povo sua bandeira de luta? Até vemos alguns casos isolados, alguns projetos que objetivam dar livro a quem tem sede de leitura, mas muitas vezes, o livro, este que deveria ser peregrino, um cigano sem porto, a viajar de mãos em mãos, fica parado, acumulando poeira num canto qualquer de uma casa ou nas prateleiras de várias bibliotecas deste país. Claro que temos muitos leitores, mas temos bem mais decodificadores de signos lingüísticos – “O xale da vovó é roxo”, “Bia é a babá. A babá cuida do bebê”.
Já a música, pelo menos grande parte dela, não exige esforço, penetra nosso cotidiano sem permissão, cruza fronteiras, é ouvida em outra língua sem necessidade de tradução. E quem quer saber da letra!? A mídia vive dessa cultura musical descartável, de fácil acesso e de fácil substituição. Eis aí uma coisa que me incomoda na música: sou obrigada a deixar entrar tímpano adentro variados ritmos e letras. Meus vizinhos têm um gosto musical que não aprovo, mas eles adoram som no volume máximo, na rua carros de propagandas poluem as ondas sonoras com aquilo que a mídia planta. Bem que poderiam me perguntar se o som deles pode entrar em meus ouvidos, seria tão mais simples. Então, o jeito é ficar no meu canto, com o livro, sozinha, enquanto o resto do mundo ouve “música”. Falando em vizinho, por que ninguém briga com o vizinho por este estar lendo depois das dez horas? Na realidade, as pessoas nem sabem que o vizinho tem livros.
É por esta perspectiva que creio que a “mídia” já definiu os lugares de cada coisa. E nós ficamos — como bem lembra Zé Ramalho em Admirável gado novo — , numa “vida de gado” sem nem perceber.


23. Saramago morreu. Saramago viverá como um clássico? Ou a memória do esquecimento vencerá?

PILS: Certamente Saramago já pertence ao grupo dos clássicos. Creio que depois de Pessoa, seguindo a linha do tempo, ele seja o grande nome da literatura portuguesa e mais um a compor a literatura universal.
Em seu livro Intermitências da Morte, Saramago chama a atenção para a morte como condição necessária para o homem. No entanto, ainda neste livro, ele cogita a existência de alguém que rejeita os avisos da morte. Talvez seja este o futuro dele: rejeitar a morte e o esquecimento, chamando para si a imortalidade de seu pensamento e sua obra.

22. O que diria aos leitores de Palavra Fiandeira, como a sua mensagem final?

PILS: É muito bom, de alguma forma, fazer parte deste projeto – a revista Palavra Fiandeira – tão bem intencionado em promover a arte e a cultura não apenas numa perspectiva nacional, mas trazendo nomes, muitas vezes desconhecidos de outras partes do mundo e/ou trabalhando com temáticas oportunas. Espero que este meu jeito simples de viver, de pensar e trabalhar em prol das artes, em especial a literatura, seja oportuno e provocador de alguma nova reflexão. Estou muito feliz em poder dividir com vocês a alegria de amar a literatura e crer nela e em outras expressões artísticas como meio eficaz para propagação do pensamento reflexivo, que tem início nas artes e se reflete no homem, que por sua vez o projeta na sociedade. Desta iniciante no mundo da leitura um abraço carinhoso...

"Arte não é adorno, Palavra não é absoluta, Som não é ruído, e as Imagens falam, convencem e dominam. A esses três Poderes-Cidadãos não podemos renunciar, sob pena de renunciarmos à nossa condição humana." Augusto Boal

Paula Ivony Laranjeira 

ENTREVISTA REALIZADA POR MARCIANO VASQUES 

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PALAVRA FIANDEIRA
Revista de divulgação literária e cultural fundada pelo escritor
Marciano Vasques

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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

PALAVRA FIANDEIRA - 49

PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA LITERÁRIA
REVISTA DIGITAL DE LITERATURA
ANO 2- Nº 49 -25/DEZEMBRO/2010

EDIÇÃO

NATAL
Igreja da Penha - Foto: Danilo Vasques
Montserrat quando criança
GUAÍRA - Maria José Amaral
PIETÁ - Obra de Marília Chartune
Carmen Ezequiel


Cartão de Regina Sormani e Marchi
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Marília Chartune Teixeira


O NATAL NO MUNDO DA ARTE


O Natal passou a ser celebrado no dia 25 de dezembro depois do ano de 313 DC, quando o imperador romano Constantino que após um sonho em que lhe apareceu uma cruz com os dizeres “com este sinal vencerás”.  Venceu a batalha de maxêncio colocando o sinal de uma cruz nos escudos, e assim deixou de combater e matar cristãos. Os cristãos daquela época passaram a conviver com o poder do Império Romano que tinha muitos deuses, e um deles era o Deus Sol, que era celebrado no dia 25 de dezembro no solstício. Era uma festa pagã muito arraigada no povo e nos costumes do império Romano. As autoridades da igreja daquele tempo propuseram ao imperador Constantino e depois ao Imperador  Teodósio a colocar neste dia a celebração do nascimento de Cristo que é a luz do mundo(is 9, 1 -10) o que foi aceito, e aos poucos foi esquecido o Deus sol e entrou no seu lugar Jesus que através dos séculos chegou até nós, houve assim a cristianização de uma festa pagã.

Grandes mestres da pintura idealizaram a cena da “Natividade” em obras emblemáticas que são copiadas e reproduzidas em cartões e papéis de presente. O espanhol Murilo, os italianos Giorgione, Piero De La Francesca, Michelangelo, Leonardo da Vinci e Raphael Sanzio, entre tantos outros, representaram as cenas da Anunciação, Adoração dos Pastores e os Reis magos, assim como a Maternidade estampada no semblante sereno de Maria, mãe de Jesus.
Desde os anos 330 DC, na arte Bizantina, a Natividade é tema de pintores assim como no pré Renascimento com retábulos e afrescos. O Renascimento e Barroco foram os períodos férteis da religiosidade na arte com a humanização, perspectiva e volume até que a Arte Moderna e Contemporânea quebraram o vínculo com a Igreja e a forma pré concebida com muita criatividade.

O Catolicismo cultua o Nascimento de Jesus segundo as Escrituras e o Mundo Ocidental criou o calendário baseado no “Anno Domini” respeitado pela Organização das Nações Unidas e União Postal Universal. Mas o que realmente importa é que esse tema, tanto para escritores, músicos ou artistas é infinito com muitas formas e versões a explorar e a festa é comemorada por cristãos e não-cristãos em todo o ocidente.

Essas informações são insignificantes diante da grandeza dessa maior data cristã em que se comemora o Nascimento de Jesus.Hoje, porém estamos  constatando uma paganização do Natal e parece-nos que a maior preocupação é com o que se vai comer e beber e o consumismo. Um tal de Papai Noel inventado em uma propaganda da coca-cola nos anos 30 está tomando o lugar do aniversariante Jesus. Símbolos Natalinos muito utilizados em decorações para a festa são muitas vezes sem identificação com a fé e em algumas composições surgem doces, renas, duendes e até mesmo o Papai Noel, cuja verdadeira identidade se atribui a Santo Nicolau. A fantasia que se criou está intimamente ligada ao consumo e festividades na intenção de reunir amigos e familiares para troca de presentes, cartões com mensagens de Boas Festas, às vezes a despeito da religiosidade. Mas de alguma forma, o milagre natalino cria um certo efeito renovador e um clima de solidariedade, fé e esperança!

Marília Chartune Teixeira
Artista Plástica
Santa Maria - RS



Edson Gabriel Garcia



MEMÓRIAS DE UM PAPAI NOEL


Que fique bem claro: eu não sou jornalista. Gosto muito, é verdade, de escrever, mas daí a me considerar um jornalista vai uma distância imensa. Apesar disso, todas as vezes que o Fernando do jornal A VOZ DA COMARCA me chama para rabiscar algumas idéias e publicá-las, eu atendo imediatamente.
Não foi diferente dessa vez, quando ele me pediu que fizesse uma entrevista com o Zé do Bucho, o sujeito que mais vezes se vestiu de Papai Noel na cidade. O Zé preparava sua aposentadoria e este seria seu último natal noelino. Além da homenagem, a entrevista poderia registrar as memórias de muitos de nós.
Encantado com o convite, aceitei na hora. Acertamos a data de entrega do material, marquei o dia da entrevista com o Zé do Bucho, preparei o roteiro das perguntas... e lá fui eu conversar com ele.
Conversamos durante umas duas horas e o roteiro de perguntas que eu havia preparado serviu muito pouco. Eu até já sabia disso. Uma vez tinha lido num desses manuais de redação, que uma boa entrevista acontece mesmo sem roteiro. Se a conversa é boa, se o assunto é interessante, a própria entrevista dita o rumo e o roteiro. Gravei toda a conversa e anotei muita coisa. O relato a seguir é apenas uma parte muito pequena do que conversamos e anotei. É apenas o que cabe no jornal. O resto, guardei comigo, nas fitas, nas anotações, na lembrança. Mantive o relato em primeira pessoa, como se o próprio Papai Noel estivesse conversando com o leitor. Talvez assim pudesse passar um pouco mais de emoção.

Eu não nasci Papai Noel. Eu me tornei Papai Noel, por acaso, e depois por vontade própria e prazer. A primeira vez que me chamaram para ser Papai Noel eu achei estranho, mas topei. Embora fosse novo, a barriga em volta da cintura já ia grande e a barba, que sempre usei para esconder uma cicatriz no rosto, ameaçava a presença de fios brancos. O convite veio do provedor da Santa Casa, o único hospital da região, recém inaugurado, parecendo um jeito novo de tornar menos penoso o dia de natal das crianças hospitalizadas. Um tanto desengonçado na roupa larga feita de cetim vermelho e com a barba de algodão branco, vivi minha primeira experiência como Papai Noel. Os olhos enfraquecidos das crianças adoentadas encheram-se de brilho e vivacidade com a minha presença. Elas deram pouca atenção aos brinquedos recebidos. Não porque fossem coisinhas mixurucas, que eram mesmo, mas talvez porque o presente que quisessem ganhar, verdadeiramente, era a sua saúde de volta. E me pediam isso com os olhos, com a mão estendida, com o sorriso. Naquele dia aprendi, para sempre, que o maior presente de natal que uma pessoa pode receber é a sua saúde.
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Também me lembro de uma vez, uns dois ou três anos depois, de uma véspera de natal, eu vestido com a mesma roupagem, na Casa da Criança. Moravam nessa creche umas dez ou doze crianças sem família, acolhidas pelo Padre Miguel, o religioso mais dinâmico e empreendedor que passou por nós. Uma semana antes do natal eu passei por lá, devidamente paramentado de Papai Noel, e recebi das mãos das crianças uma cartinha com o seu pedido. O presente mais pedido foi “uma família”. Eu li carta por carta, mesmo sabendo que não poderia atender o seu pedido. Quando voltei, acho que sofri mais do que as crianças. Sabia do seu segredo, do seu pedido e sabia que não podia atendê-las. Inventava uma alegria para distribuir os presentes doados e tentava dar a minha cota para a felicidade delas. Hoje, muitas dessas crianças são adultos e tentam construir uma família que nunca tiveram. Quando nos encontramos, trocamos um sorriso ligeiro, cúmplices desses segredos dos tempos da infância triste.
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Eu me acostumei tanto à personagem do bom velhinho que passei a aceitar qualquer convite, qualquer proposta e oferta. Não podia mais viver sem a fantasia do Papai Noel. Queria porque queria viver a alegria da felicidade passageira do natal com crianças. Durante um bom tempo da minha vida, tive a sensação de que o único tempo que importava era os dias de dezembro, quando eu saía da personagem Zé do Bucho e vivia a verdade do Papai Noel. Os outros trezentos e tantos dias do ano eram apenas figurantes, preparação para viver o Papai Noel. Eu contava dia por dia a espera do natal, o reinado breve de Papai Noel e a alegria das crianças.
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Aos poucos, no entanto, esse Papai Noel senhor dos olhares carinhosos, dono da alegria pura e conhecedor de todos os segredos e desejos íntimos das crianças foi desaparecendo. Foi sendo substituído por um Papai Noel profissional, de sorriso falso, de paciência curta. Gente que entrava na roupa vermelha sem brilho por poucas horas, em troca de pagamento minguado. Pior ainda: seu comportamento era movido pelo interesse de quem o contratava, do dono da loja, do patrão, do político. E em vez de lidar com a alegria das crianças, sua tarefa principal passou a ser outra, chamar a atenção dos pais, potenciais consumidores das mercadorias anunciadas. Aceitei alguns desses trabalhos. Tentava sobreviver, buscava resgatar o prazer de viver o Papai Noel e encontrar, mesmo que disfarçado de vendedor, crianças alegres, olhares curiosos, emoções soltas. Precisava trocar essa energia com as crianças, pois pensava que só nós sabíamos da importância do Papai Noel em sua vida.
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Os tempos mudaram muito. Uns dizem que para melhor; outros dizem que tudo piorou. O Papai Noel invadiu a televisão e o computador, trocou o silêncio da noite pelo barulho da porta da loja. As cartas das crianças foram substituídas por recados mais práticos e diretos. O sonho com o presente desejado foi trocado pelo brinquedo antecipado e anunciado na tevê.
Não há mais espaço para um velho e autêntico Papai Noel como eu.”

Entreguei a matéria para o Fernando. Foi publicada como eu escrevi. Logo chegou o tempo do natal e fiquei sabendo que o Zé do Bucho vestiu-se de Papai Noel, por conta própria, pela última vez. Gastou toda sua economia da caderneta de poupança comprando presentes para crianças. Visitou as duas creches e o bairro mais pobre da cidade distribuindo os presentes. Gastou toda sua poupança, mas deve ter acumulado energia para tocar adiante sua vida, pensei comigo.


Edson Gabriel Garcia

Escritor


Carmen Ezequiel


SOMBRAS COMUNS E O NĀTĀLIS
uma reflexão
uma entrevista
um pedido

Por Carmen Ezequiel, em exclusivo para o PALAVRA FIANDEIRA

Ainda se lembra da razão do Natal?
Aquele Natal que foi completamente consumido pelo consumismo louco do presentear objetos físicos em prol do verdadeiro espírito natalício?

Em Sombras Comuns, nesta edição especial, evidencia-se o sentido do dar e a razão pela qual as famílias se unem nesta data; encontra-se o Natal e o entrevistaremos; e, no final, faz-se um pedido ao Menino.

uma reflexão

Muitos são os símbolos (o presépio, a árvore, o pai natal, os presentes no sapatinho, as luzes, a missa do galo, a ceia e o bacalhau, …), que fazem do Natal aquilo que é, e a simbologia; quer seja vista por uns como fazendo parte desse espírito, quer seja desacreditada por outros; existe, entendendo-a, cada um, à sua maneira.
O NATAL? A própria palavra é carregada de significado (como todas as outras), designa nascimento, sendo isso que se celebra: o nascimento do menino (Jesus ou não, porque quem não acredita em Jesus Cristo ou é agnóstico (não religioso ou não católico), certamente não celebrará esta data. Mas, é certo que quem celebra acredita? Ou, não? Nesta nota, evito recorrer à crença o que inevitavelmente lhe está subjacente e que é motivo pelo qual se enaltece o mesmo.)
Ainda assim, tenta-se fazer uma abordagem meramente conscienciosa em que SER é motivo bastante para a data em si.
Evidenciando o nascimento de uma qualquer criança, o que é natural e comum em quase todo o lugar, é a celebração desse dia. Os pais, as famílias e os amigos comemoram, ficam felizes e são ofertados presentes pela nova vida. Desse ajuntamento vive-se na alegria, no entusiasmo, em união e na paz. Esta é uma analogia eficaz, mesmo se o dia celebrado seja ou não esse, mesmo se os ícones sejam cultos excessivamente valorizados, mesmo que somente nessa data se lembre que o dar ou doar é um milagre do amor entre os homens.
Toda a pessoa tem, dentro de si, a capacidade de amar e de dar, quer seja com um carinho, um abraço, um gesto ou um sorriso, um agasalho ou um alimento. Cada um deles pode fazer a diferença, mesmo que ínfima, em alguém… alimentando o corpo, aquecendo a mente e dando alegria. É isto que representa o Natal.

Ainda se lembra do conto de Charles Dickens, “A Christmas Carol” (O fantasma do Natal passado)? Se no século XIX a sociedade de consumo já era criticada, parece-me que continua a existir esta ganância do ter com uma intensidade e fervor cada vez maiores.
Será que neste Natal nos recordaremos deste conto? Será que agradeceremos pelo que temos e mais importante, pelo que somos?

uma entrevista


O Natal… perguntas e respostas.

Carmen Ezequiel (PALAVRA FIANDEIRA) – Qual é o sentido de se celebrar o Natal?
Natal – Quando era criança o Natal representava muito para mim. Era o momento em que a família se reunia para celebrar o nascimento do Menino Jesus.
Nos tempos que correm… cada vez mais se constata que essa razão deixou de ser importante na nossa sociedade e a festa da família perdeu o sentido festivo que tinha, dando lugar a inúmeras preocupações e acções pouco ou nada festivas: o consumismo desenfreado, a preocupação e o sentimento de obrigação em comprar presentes porque “parece mal” não dar…
Faz todo o sentido em celebrar o Natal se o adequássemos aos tempos e às necessidades de hoje, sentindo a vontade de ajudar quem precisa, de modo a que todos os indivíduos possam ter um Natal digno: comida, roupa, carinho… é tão importante que todos contribuam….
(há sempre uma estrela que brilha mais forte e que te ilumina o caminho
é necessário acreditar sempre)

CE – Porque se oferecem presentes?
N – Na sociedade actual, os presentes representam algo de palpável e são o reflexo da mesma. Algo representativo seria uma mão cheia de beijinhos e abraços, o primeiro passo para um mundo melhor.
(um beijinho e um abraço para ti também)

CE – O que é cantar ao Menino? E, que Menino é esse?
N – Referimo-nos ao Menino Jesus e “Cantar ao Menino” é dar graças do seu nascimento, trazendo desse modo muita alegria a todos os crentes.



(Curiosidade do Natal de Elvas (Alto Alentejo) Ainda hoje em noites de Natal, é frequente escutar no silêncio das ruas, o som das roncas, como memória dos tempos, ressoando cavas e roucas, a acompanhar o compasso lento, dos cantares dos homens, que embuçados nos seus capotes, arrostam o frio da invernia para reverenciar o Menino Deus. Solenes, vão cuspindo na mão, para lubrificar a pele, como também fazem para empunhar a enxada e cantam coisas belas e ingénuas que o coração lhes dita.)


CE – Quem é o Pai Natal? E, porque não há uma Mãe Natal?
N – Sem rodeios nem teorias, respondo a esta pergunta da forma mais sincera possível. A meu ver, o pai natal é retratado como um senhor com ar envelhecido, com grandes barbas brancas e que usa umas vestimentas vermelhas e brancas e um barrete das mesmas cores. Pelos visto, este senhor é tão imortal ou intemporal como Deus. Nasceu para passar um ano inteiro a trabalhar, para no dia 25 de Dezembro de todos os anos entregar prendas a todas as pessoas do mundo especialmente às criancinhas. Partilha ainda com Deus o poder da omnipresença, pois agora consegue estar em todos os centros comerciais do nosso país (e do mundo inteiro), a tirar fotos com as criancinhas e, como estamos em tempos de crise ainda se faz pagar bem por isso! Não querendo ser demasiado reducionista nesta resposta, a minha forma de ver a imagem do pai natal é meramente consumista e comercial. O fato de não existir mãe natal, não sei se existe ou não, mas duvido que um senhor com esta idade e com tanto trabalho, consiga organizar a sua vida sem uma mulher, eu penso que ela existe, encontra-se é nos bastidores a fazer com que o pai natal consiga continuar a existir.
(é esta a ironia do Natal: personificar a sua magia e dar-lhe um nome)

CE – Um símbolo natalício para cada uma das palavras seguintes.
Nascimento = alegria
Amor = nascimento
União = paz
Paz = bondade
Alegria = amor
Bondade = amor
Porque tudo está em si mesmo, e só depois, o menino Jesus, a sagrada família, a vaca, a ovelha, a pinha, os reis magos, as oferendas, a mirra, a estrela, a empada, as fatias douradas, o peru, a árvore, etc.

CE – Que mensagem deveria ser sinónimo de Natal?
N – “Há mais felicidade em dar do que há em receber(Actos dos Apóstolos, 20:35)
Cliché ou não, esta é a mais significativa mensagem de Natal, dar sem esperar receber em troca. Todos nós já experimentamos a sensação, mas se fosse assim tão fácil, o mundo seria muito diferente.
(é fácil dar, o difícil é não receber)

No fundo o que permanece é a família, o amor, o carinho e a amizade… o bem que provocamos no outro.
Porque o que é sorrir sem que ninguém olhe; o que é rir sem que ninguém oiça; o que é olhar sem nada para ver; o que é sentir sem vida para abraçar?
O que importa é sermos o outro com os nossos olhos e dizermos o que se sente no momento.
É aqui que agradeço aos meus colegas e amigos, pela reflexão e partilha sobre o tema, quer tenha sido fácil ou difícil para uns, estranho ou irónico para outros, mas que pela importância que cada um deles representa para mim relevo. À Isabel, ao Rúben, à Mónica; ao Luís, à Sónia e ao Duarte e a todos os outros que nos acompanham.
Um FELIZ NATAL com carinho.

um pedido

Pedido… a um Natal verdadeiro…
Este ano pelo Natal não quero receber nenhuma prenda especial. Não quero ser dona de um materialismo ao acaso e forçado, para se trocar pela consoada.
Não quero ser mais uma a reencaminhar postais e ou imagens de Natal, acumuladas nas caixas de correio, frias e perdidas num mundo virtual.
Quero antes tolerância!
Para poder chegar ao fim de cada dia e agradecer vivamente a minha vida!
Para ter a capacidade de saber perdoar aqueles que, diariamente, me julgam pela diferença.
Para não mais ser dona de um pessimismo louco, tresloucado e contagiante que irradia das pessoas que tudo têm.
Para poder desfrutar dos outros e do amor deles, enquanto coexistirmos e não depois…
Para poder ser melhor e dormir feliz.

Aqui, fala-se de tudo e de nada.
De tudo o que somos.
De nada que ninguém é.

Bem-haja e um SANTO e FELIZ NATAL!

Carmen Ezequiel
Escritora - PORTUGAL


Angela Leite de Souza
Angela Leite em autógrafos de livro de sua autoria

PRESENTE DE NATAL


Era dia 24 de dezembro, véspera de Natal. Perto de cinco horas da tarde. Papai lia uma revista, sentado na poltrona de sempre. Mamãe, no cabeleireiro, com minhas irmãs. Da cozinha chegava o perfume delicioso de peru assando e eu, sem nada para fazer, comecei a saborear aquela ceia em pensamento. Ficava sempre assim, ansioso para que a noite viesse depressa, com as gostosuras e as surpresas de todos os anos.
A campainha tocou. Fui atender.

- Pai, tem uma mulher aí na porta, com um barrigão de todo tamanho. Está pedindo um auxílio, diz que qualquer coisa serve. Vamos dar ou não?
Papai fez uma cara de aborrecimento, tirou os óculos devagar, levantou-se com mais preguiça ainda. Mas falou:
- Acho que devemos, né, Henrique? Afinal, hoje é um dia próprio pra essas coisas...
Foi até a sala, já com a carteira na mão. Eu ia rente a ele.
Acho que quando viu a moça - tão magrinha, no final da gravidez, mal vestida, olhar triste - tudo isso mexeu com o coração dele. O meu também tinha ficado pequenininho ao pensar na situação dela comparada com a nossa.
A dona falou sem jeito:
- O doutor me desculpa, eu num queria aperrear o senhor não. É que eu tô com tanta fome...e assim desse jeito (apontou para a grande saliência no vestido) a gente num arruma serviço.
Papai olhou pra mim, como se não soubesse o quê fazer. Henrique, disse ele afinal, vê o quê que temos de comida pra dar a ela.
Nós dois sabíamos que havia o suficiente para alimentar umas trinta pessoas ã vontade. O cheiro que vinha lá de dentro confirmava isso. Entra, falei, vamos preparar um prato pra você.
Maria comeu por dois, ou até mais. Quando estava acabando, chegaram minhas irmãs e mamãe, tiveram pena dela, arranjaram uma roupa larga, tomou banho, ficou com outra cara. Dorme aqui hoje, disseram. Ela ficou. E também ganhou um presente que inventaram na última hora - um vidro de perfume, ou um talco, não me lembro direito.

Deitamos tarde e só fui acordar ao meio-dia. Estranhei o som que vinha do fundo da casa. Corri até lá e dei com mamãe e Fernanda curvadas sobre a cama, no quarto de despejo, que já foi de empregada. Maria estava lá, com um menino deitado ao seu lado, começando a mamar.
Então era o choro dele que tinha escutado!

Hoje faz um ano que Jesus Henrique nasceu. Maria continua morando com a gente. Ela ajuda mamãe em tudo e nós costumamos dizer que foi um presente que caiu do céu no último Natal. Mas ela acha que não, que foi o contrário:
- Se ocês num fosse tão bons, onde é que estaria agora com o meu menino?

Angela Leite de Souza
Escritora


Montserrat

Montserrat quando menina
Montserrat com uma menina

UNA NIÑA DETRÁS DE UNA VENTANITA

Tranquilita respiro y aspiro y voy paseando por mi pensamiento retrocediendo en el tiempo, hasta que llego a una calle del Barrio de Gracia, situada en Barcelona.

Detrás de una ventanita de cristal trasparente está una  niña de unos siete años.

Yo la saludo, ¿Como te llamas?
 ella- Montserrat
yo-  Te llamas como yo, que casualidad.
ella- ¿Quieres entrar en mi casa?
yo- l Claro que si!.
A medida que voy entrando a través de la planta baja, voy reconociendo todos los muebles y todas las estancias de la casa que vivi hasta los 21 años, cuando me casé.
Luego va buscar a una señora, a un señor y a un niño de unos 14 años.
ella -Amiga te presento a mis padres y a mi hermano-
yo- ¡Carmaba, pero si también son los míos!.Déjame que los abrace.
ella- Ahora te voy a enseñar el Pesebre que con cuanto amor a construido papá
yo- ¡Oh que bonito!
ella -Sabes he visto como lo construia en el taller, moldeando las montañas con sacos y yeso y luego las ha pintado.
yo-Y no le falta detalle,¡ que manos que tiene.!
ella -Mira, mira, si hasta se puede pasa del día a la noche con este interruptor.
yo-¡Oh y tiene luna y estrellas!
ella-Y los pastorcitos alrededor de una olla y el angel anuncándoles la buenanueva; los tres reyes magos, la mujer que lava en el rio.
yo-¿Pero sabes lo que más me gusta amiguita?.
ella- No.
yo-Pues lo que más me gusta es el Nacimiento.La cueva. San José y la Virgen, al lado del Niño mirándolo con amor. y detrás el buey y la mula dándoles calor.
yo (mirando al padre)- Gracias papá por estas ilusiones y amor con que construias el Pesebre.
ella (abrazándome y dandome un beso)-Gracias por venir en mi busca, ya ves¡que manos tenía papá!.
Poco a poco vuelvo al presente, sentada en mi ordenador he ido escribiendo este encuentro con mi niña interior.

Montserrat - ESPANHA
Cronista




Danilo Vasques




O TESOURO DE PROBO
(um conto de Natal por Danilo Vasques)

O pequeno Probo não continha os dentes, ria alto e corria pela sala. Aos seis anos de idade, recém-completados, ele ganhara a sua primeira caixa de bombons. Era véspera de Natal e o menino sentia-se recompensado por ter vencido a batalha escolar: havia conseguido boas notas e conquistado com mérito o seu primeiro ano. Rasgou com delicadeza o plástico protetor e demorou-se a pinçar um embrulho de chocolate. Por fim, escolheu o menor, dourado. Abriu-o com cuidado e viu o doce coberto por um creme branco riscado por tiras pretas. Em sua boca desmanchavam-se as palavras encanto e alegria.

Juvento, seu único irmão, quatorze anos, observava a cena escondido à sombra do sofá defronte. Quando Probo fechou a mordida, o veloz e mais alto correu até ele e num assalto encaixou a caixa sob o arco de seu braço direito. Probo ficou furioso, gritou e correu atrás do adolescente que se desvincilhava com longas passadas e saltos. O pequeno não aguentou e derramou-se em um choro longo e estridente. Temendo a fúria dos pais, Juvento sumiu porta afora e os chocolates encontraram o chão da sala.

Probo crispou as sobrancelhas por seu rastro e curvou-se sobre os doces espalhados. Ouviu as vozes dos pais que conversavam na cozinha e teve fé que não viriam ao seu encontro, sentiu-se só e passou a recolher os bombons. Num rompante, inquietou-se a pensar que seu irmão provavelmente voltaria a lhe tomar o presente. O menino precisava driblá-lo.

Zanzava pela sala irresoluto até que um brilho se fez aos seus olhos: o quarto de sua mãe era o esconderijo perfeito, certamente o tesouro estaria seguro ali. Já no aposento dos pais, acocorou-se atrás da cama para descansar e espiar a guarita improvisada. Comeu com vagar um chocolate em forma de coelho e experimentou algumas bolinhas coloridas enquanto imaginava um local para guardar seus pertences.

Eis que a ideia surgiu clara e precisa: esconderia os bombons dentro do grande bolso de bordas brancas da roupa vermelha de Papai Noel deitada sobre a cama. Como a caixa não caberia inteira, seria necessário abandoná-la. Armazenou os chocolates dentro da roupa mágica e, sacrifício ímpar, rasgou a caixa de papelão antes de encestá-la no lixo da cozinha à tentativa de evitar qualquer chamariz.

O menino foi para seu quarto e ficou pensando na roupa que tanto figurava em sua imaginação. Probo tinha quatro anos quando a viu pela primeira vez sobre a mesma cama. Na ocasião, também véspera natalina, ficou assustado e ansioso por encontrar o seu dono até que seus pais logo o acalmaram ao contarem que ele não estava lá.

Explicaram eles, em contraponto ao irmão que insistiu em alardear que essa história de Papai Noel era tolice, que a viagem que seu ídolo empregava aos finais de ano era longa, tormentosa e causava enorme desgaste. Contaram que quando o velho barbudo chegava ao Brasil costumava ficar tonto com o carlozão dos trópicos, pois vivia sob o frio de um Polo Norte distante e nevado. Comumente, o suor escorria por sua testa e embaçava seus óculos, seu traje sujava de carvão dos desembarques e, exausto, precisava de um canto para se revigorar. Probo entendeu que a roupa só estava ali por conta de um favor que seus pais faziam durante todos os Natais: guardavam a danada para quando Noel chegasse cansado. Ele, que era amigo da família, teria assim a chance de tomar um banho gelado — para diminuir o calor — e vestir seu uniforme limpo e passado.

Probo nunca avistara o viajante de chaminés chegar com suas roupas comuns, tampouco já ouvira o barulho do chuveiro de seu banho, somente o encontrava já no correr da noite de Natal, quando ele aparecia subitamente sustentando um montante de presentes que gentilmente depositava aos pés da árvore de luzinhas. Cada embrulho trazia um nome.

O garoto julgava que sua passagem era demasiada breve, que ele poderia eventualmente ficar para ceiar ou ouvir as canções da televisão. A cena era conhecida: após depositar os pacotes em silêncio e cumprimentar a todos com sorrisos, Noel seguia rapidamente para a porta, pronunciava um garboso "Feliz Natal!" e desaparecia ao cruzar a porta evitando qualquer interpelação.

A noite engrossou e o sono tomou os olhinhos de Probo que adormeceu em seu quarto. O menino estava sentado sobre uma bola de futebol observando ao longe grandes baleias saltando feito golfinhos em arcos de quinze metros. Quando elas reencontravam as águas, explosões de fagulhas coloridas tingiam o horizonte. Entre os lampejos, um homenzarrão grisalho destacou-se voando de braços abertos e estendendo as mangas de seu traje escarlate ao desenho de um gigante pássaro.

A ave rubra que cortava as nuvens em picos e mergulhos se aproximou de Probo e o deixou à sombra do abraço de suas asas. O menino quis gritar mas sentiu mãos humanas segurarem seus pulsos e conduzirem seu corpo para cima. Ambos flutuavam.

Quando nas alturas, os dois passaram a flanar ladeados com mãos dadas sobre o chão de nuvens. O pequeno reconheceu o velho que lhe acompanhava e sorriu para ele. Em seguida, curvou o pescoço para baixo e notou que as nuvens começavam a se dissipar sob seus pés. Não teve tempo de qualquer reação, passou a cair velozmente e o apavoro tomou-lhe a garganta. Acordou e viu a mãe que entrava pela porta do quarto. Abraçaram-se e o filho sentiu-se calmo com suas palavras: "Papai Noel se atrasou mas já vai chegar"

Mão dada à mãe, Probo foi conduzido até a sala. Reviu Juvento sentado próximo à árvore e surpreendeu-se com o sorriso que o irmão lhe ofertou. Seu pai não estava, a mãe comentou que ele havia saído para cumprimentar os vizinhos. Em segundos, uma figura conhecida invadiu a sala carregando alguns poucos pacotes de laços.

Três minutos postos, presentes sob a árvore, sorrisos trocados e Papai Noel estava a cruzar a porta. Antes de sair, voltou os olhos — os quais Probo julgou fundos e cansados — para o coletivo e emendou o esperado e caloroso "Feliz Natal!". Ao puxar a porta às costas, o visitante expôs um fragmento de verdade que o menino não deixara de notar: Probo reconheceu o relógio de pulso do seu pai.

O calor da sala e as vozes dos familiares não detiveram seu pensamento. Alguma coisa lhe faltava. Ademais, Probo recordou os chocolates escondidos no bolso da fantasia. Precipitou-se até a porta, ignorou os apelos da mãe para que ficasse e encontrou uma rua sem vultos. Contudo, o instinto fisgou seus olhos e o fez voltar-se para a esquerda. Reconheceu seu pai mal refugiado atrás de um arbusto, sem gorro, rosto liso e trajado de espanto.

O menino, tomado por um contragolpe interno, correu e reencontrou a casa. Na sala, investiu dois socos no braço direito de Juvento. A mãe ensaiou separá-los quando o adolescente derrubou com facilidade Probo que ficou preso sob seu corpo e não conseguiu desviar do ataque de cócegas. Riram juntos até ficarem ombreados entre gargalhadas.

Segundos depois, Probo levantou-se, escapou das novas investidas do irmão e correu até seu pai que permanecia parado sob o batente da porta. Abraçaram-se longamente. O pequeno deixou de sorrir e pôs-se em silêncio, enquanto Juvento e sua mãe os observavam. Eles sabiam que alguma coisa em Probo havia partido e que uma nova jornada se iniciava.
DANILO VASQUES
Jornalista



Maria Thereza Cavalheiro

MEDITAÇÃO NATALINA


Chegou o Natal, com o brilho de suas luzes, o colorido dos enfeites nas arvoriznhas, as toalhas rendadas sobre a mesa para os ágapes comemorativos.
Com o Natal, vem a euforia de novas roupas, o preparo das iguarias, a corrida à lojas para as compras dos presentes. Cartões, e-mails, telefonemas, beijos, abraços... A expectativa do ano que se aproxima, quiça com boas surpresas e esperanças...
O décimo-terceiro vibrando na mão, os anúncios com mil novidades aos nossos olhos, muitos desejos satisfeitos... e alguma tristeza, também, dos que não poderão ter o prêmio do regalo esperado, dos que não conseguirão festejar o Natal a seu gosto. Natal é Natal, porém, e haverá sempre um copo de vinho, uma guloseima, um bolo, um assado cheiroso...

Tivemos um ano agitado, com mudanças na política, disputas pelo poder, greves...guerras... Parece que, com tantos acontecimentos, os dias correram mais depressa. Ou seríamos nós que passamos mais depressa pelo ano? Cheios de ocupações, compromissos, prazos, e de olhos atentos no extrato bancário? Preocupados com as compras, os pagamentos, sobrecarregados com o "ter" e, talvez, pouco pensando no "ser"?
O fim do ano nos leva à meditação. Muitos fazem um "balanço" do que se passou - para ver se mais ganharam em dinheiro , em prestígio, em fama. Ou se devem porfiar mais , correr mais no ano que se aproxima para lá chegar...
Convém, na época natalina, rever sentimentos, atitudes; apagar rancores, sermos mais benevolentes com o próximo. Mesmo com relação àquele que nos ofendeu, nos magoou. E pedir então a Deus para que se torne uma pessoa melhor, que tenha uma noção mais clara de sua missão aqui na Terra. Sim, porque não viemos a este planeta para nada...
O homem é o único ser da natureza que tem o dom do raciocínio, da palavra. Pois usemos o verbo para amenizar situações, levar palavras afetuosas aos nossos familiares, aos nossos amigos, e até àqueles que não conhecemos. É plantando aqui e acolá que fazemos vicejar as flores...
Seja, pois, este Natal um período também de recolhimento, de prece a Deus para que se compadeça da humanidade em sua infinita misericórdia . O arquiteto do universo tem todos os motivos para estar descontente com Seus filhos. Basta ver o que fizemos dos Seus rios, Seus mares, Suas florestas; dos animais que Ele criou, do ar que respiramos . O homem nega a Deus todas as horas, destruindo Sua obra, pela ganância, pela incompetência, pelo ódio. O homem se tornou muito egoísta.

Mas nunca é tarde para voltarmos atrás, somar bons pensamentos, principalmente pela paz; fazer uma egrégora que abranja o mundo inteiro. A paz é a base do progresso. Sem paz não se vive, não se vai para a frente, não se constrói.
Estamos todos muito abalados, principalmente com as últimas ocorrências. É preciso que haja mais amor no coração das criaturas. Só através do amor conquistamos a Paz. Sem esquecer que a Paz deve começar dentro de nós, no pensamento limpo de rancor. A paz deve ter início em nossa própria casa, junto aos entes mais próximos. Deve alcançar os que nos cercam, os que trabalham conosco, os que, de alguma forma, dependem de nós. E nós também dependemos de todos!
Às vezes é preciso parar um pouco para pensar. Não só nas coisas práticas da vida. Mesmo porque essas coisas ficam, e o que levaremos no instante da partida será apenas o que tivermos feito nesse curto período sobre a Terra. Correr menos, e nos prepararmos mais. O tempo não espera. Quando nascemos já começamos a partir. Por isso, é bom vivermos com paz na consciência, porque nunca sabemos o dia de amanhã.
O Natal chegou. É uma época em que estamos sempre muito preocupados em receber. Mas há também um outro grande prazer, que é o de DAR. Principalmente o de dar de si, de que muitos não se lembram.
A propósito, há uma crônica de AMADO NERVO — Juan Crisóstomo Ruiz de Nervo, o "Bardo do México" (nascido em 27.8.1870 e falecido em 24.5.1919), muito oportuna para esta época natalina. E que se intitula, justamente, "DAR". Ei-la, na tradução do nosso genial GUILHERME DE ALMEIDA:

"Todo homem que te procura, vem pedir-te alguma coisa: o rico enfadado, a amenidade da tua conversa; o pobre, o teu dinheiro; o triste, um consolo; o fraco, um estímulo; o que luta, um auxilio moral.
Todo homem, que te procura, certamente, vem pedir-te alguma coisa.
E tu ousas impacientar-te. E tu ousas pensar! Que melancolia! Infeliz!
A lei oculta, que misteriosamente reparte as excelências, houve por bem, outorgar-te o privilégio dos privilégios, o bem dos bens, a prerrogativas das prerrogativas: dar.
Tu podes dar!
Em todas as horas que o dia tem, tu dás, ainda que seja um sorriso, ainda que seja um aperto de mão, ainda que seja uma palavra de ânimo.
Em todas as horas que o dia tem, tu te pareces com Ele, que não é senão perpétua doação, dádiva perpétua.
Deverias cair de joelhos ante o Pai e dizer-lhe:
Graças te dou porque posso dar, ó meu Pai! Nunca mais passará pelo meu semblante a sombra de uma impaciência!
Em verdade, em verdade te digo que mais vale dar que receber!

MARIA THEREZA CAVALHEIRO
Escritora



Jéssica Lima

GIZ DE CERA - Autor: Danilo Vasques



Luzes

Manoel, menino do interior. Seus oito anos o desenhavam com uma estatura menor àquela que deveria ter. Canelas finas, Manoel adora mascar chiclete. Seu pai é sapateiro, e sua mãe lava e passa roupas para fora.

A época que o menino mais gosta acabara de chegar: O Natal. Todo ano, Manoel escrevia, com ajuda de sua mãe, uma carta ao Papai Noel. Manoel é menino esforçado, gosta de ir à escola.

*

O ano decorreu com dificuldades para família de Manoel. O dinheiro suado garantia a comida e as contas. Com muito esforço, fizeram uma festinha de aniversário para celebrar o oitavo ano do filho único, em março.

*

Dezembro nascia com as luzes da cidadela a piscar. O garoto ficava encantado com a beleza do Natal. Sem dúvidas, era a época que mais gostava.

Como era de costume, após terminar a carta com o pedido natalino, a mãe a levaria aos correios. O Pólo Norte encontrava-se perto dali. O menino Manoel queria pedalar uma bicicleta.

A ceia na casa de Manoel costumava reunir toda a família - tios, primos, avós... Jantavam após a missa do galo, celebrada na igreja da pracinha. Família religiosa a de Manoel.

Talvez o Papai Noel não traga sua bicicleta, querido”, disse a mãe em meio aos protestos do filho de que foi um bom menino e não haveria motivos para isso acontecer.

A verdade é que os pais de Manoel não podiam comprar a bicicleta naquele momento. “Final de ano é sempre mais apertado”, lamentava o pai que já havia comprado um carrinho de brinquedo. A mãe explicou que nem sempre o Papai Noel pode presentear com aquilo que as crianças pedem. Com os olhos cheios d’água, o menino disse que seus amigos já haviam recebido aquilo que pediram. E que o Papai Noel deu mais de um presente a cada um deles.

Era sabido que os amigos do menino Manoel não passavam as dificuldades do garoto. Manoel era de família simples do interior do Nordeste. Manoel era amigo do filho do prefeito e do filho do dono do hotel. Manoel não podia ter os mesmos brinquedos que eles, não podia tomar sorvete todos os dias, nem comprar uma roupa nova a cada aniversário da cidade.

*

Na noite da véspera, Manoel não foi à missa. Seus pais estavam preocupados. Manoel não podia estar com seus amigos. O filho do prefeito foi passar as festas com a mãe na capital, e o filho do hoteleiro ajudava os pais com a festa do hotel.

Ele deve estar chateado por causa da bicicleta”, deduziu o pai. “Deixe-o sozinho. Logo ele aparece”.

Manoel andava sem rumo pelas ruas, pensando que não ganharia a bicicleta do bom velhinho. “Mas eu fui um bom menino!”.

A mãe, no caminho de volta da missa, encontrou seu garoto sentado na guia duma calçada, perto de casa. Preferiu deixá-lo com seus pensamentos.

O relógio apontou 00h00. Todos se abraçavam na casa de Manoel. Cinco minutos depois, o menino adentrou a sala, observando em sua família a união e o companheirismo.

Abaixo do pinheiro iluminado estava o carrinho que o Papai Noel, assim compreendido por Manoel, deixara para ele. E o pai prometeu presenteá-lo com uma bicicleta em seu aniversário logo breve. O menino chorou e disse que não precisava se preocupar com isso. E que Papai Noel lembrou-se dele, e isso era o que mais importava.

Todos confraternizaram numa celebração de alegria e amor. Ali, naquele momento, o menino Manoel entendeu o verdadeiro significado do Natal.

Jéssica Lima 
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Maria José Amaral




REFAZ-SE A VIDA, É NATAL


É natal novamente, parece que Cristo renasce, sempre em tudo, menos em nós mesmos. Por isso neste natal vamos nos portar como filhos de Deus, vamos renascer também, vamos ressurgir por debaixo de todo egoísmo, materialismo e vamos voltar a ser aquela criança feliz  renascida na simplicidade, na gratidão e na certeza de que Deus nosso Pai, há de nos dar o presente que mais desejamos. Seja amor, felicidade, bens, saúde, mas não esqueçamos de pedir um coração novo, que nos ensine a perdoar todas as pessoas que nos foram tiranas, todas as palavras afiadas, que dissemos, ou ouvimos, todas as falhas, todas as dores e realmente renascer, outra vez... É natal, é tempo de recomeçar.
É natal, mais que alimentar o corpo guloso com fartas ceias, vamos nutrir nossa alma, vamos nutrir nosso intelecto, vamos nutrir nosso coração, nos fartar de alegria e virar as costas para todas as coisas ruins que nos aconteceram. Se fizermos um balanço veremos que Deus em nenhum momento nos abandonou, ele pode não ter nos dado tudo o que achávamos que precisávamos,  mas com certeza ele nos deu o necessário...
Vamos caminhar pelas ruas, olhar para o céu, quantas pessoas passaram o ano inteiro sem olhar para o céu, sem ver uma estrela, sem observar o espetáculo maravilhoso do sol que toda tarde parece se deitar no leito de nosso grandioso rio, que pena, tantas pessoas não viram esse espetáculo. Algumas não tiveram tempo, outras não se deram tempo, outras só olharam para o próprio nariz ou para o próprio bolso e perderam um grandioso espetáculo, que nada lhes custaria, a não ser a alegria de ver Deus se manifestando na natureza...
Vamos remexer em nosso guarda-roupas e retirar dele os excessos, quantas pessoas precisam , exatamente do que esta nos sobrando...
Vamos nos lembrar de quem nos fez feliz, dar um grande abraço e ver nessa pessoa, o Cristo que renasceu e veio nos trazer uma mensagem de bondade...
Vamos olhar nos olhos de quem nos fez chorar e reconhecer nele uma lição valiosa, são nos piores momentos  que aprendemos as melhores lições...
É natal tempo de renascer, de arrancar a velha máscara, de podar o velho coração e semear algo novo  em prol de um mundo mais humano. É tempo do filho de Deus renascer, renasça, dê vida ao melhor que existe em ti mesmo e o mundo será melhor, muito melhor...

MARIA JOSÉ AMARAL
Poeta - Curitiba - PR

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PALAVRA FIANDEIRA EDIÇÃO DE NATAL
organização e edição: MARCIANO VASQUES