EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

PALAVRA FIANDEIRA 15


 PALAVRA FIANDEIRA

REVISTA DE LITERATURA

ANO 1- Nº 15 - 07/FEVEREIRO/2010

 

 "A vida é um fio de linha, seja o que Deus quiser."Jamelão

NESTA EDIÇÃO:

ENTREVISTA HISTÓRICA:

DANILO VASQUES 

ENTREVISTA 

JAMELÃO

 

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REMEMORANDO JAMELÃO


Famoso intérprete da Mangueira, morto há quase dois anos, cedeu longa entrevista em 2006 ao jornalista Danilo Vasques. Releia aqui um pouco da história do cantor que dizia que o carnaval já não existe


Por Danilo Vasques


No início de 2006, conheci Jamelão. Digo, conheci o homem sob o indefectível chapéu, dialoguei com aqueles olhos que muito diziam, apertei as mãos que seguiam envoltas nos tradicionais elásticos e que ora buscavam apoio numa bengala. Antes da entrevista, tive a oportunidade de vê-lo soltar a voz no palco de um bar em São Paulo. O show, que durou mais de duas horas, ocorreu na primeira noite de fevereiro daquele ano.

Dois dias depois, encontramo-nos num hotel no centro velho da cidade. Eram dez horas da manhã, ele vestia uma camisa metade verde e rosa, metade vascaína: duas paixões declaradas. A bengala ele recostou de lado e os óculos pôs sobre a mesa junto às chaves do quarto que o hospedava. Começava a entrevista.

José Bispo Clementino dos Santos, o homem por trás do músico, falou sobre a infância, criticou o atual carnaval, comentou as influências que foram argamassa para seu canto e disse que não fazia aquecimento antes de subir ao palco. "Quem tem a garganta boa canta. Quem não tem não pode cantar".

Levando a vida ou sendo levado por ela, disse que entrou no samba porque o caminho assim se fez. Cantou aqui, cantou acolá e quando viu "estava profissional da coisa". A carreira ascendeu, ganhou a avenida e as vitrolas. Jamelão se tornou um nome forte do carnaval carioca, mas não só, cantou também o amor em letras que versavam, entre outras coisas, sobre a solidão e a saudade. Lupicínio Rodrigues seria sempre lembrado por ele.

A conversa garantiu uma edição do programa Refletor1, um título de jornalismo cultural que passou em São Paulo via cabo. Ainda naquele ano, em julho, uma reedição da entrevista saiu publicada no número 47 da revista Ocas"2.

Ainda em 2006, falamo-nos novamente no dia em que ele celebrou seu aniversário (nasceu em 12 de maio, mas a festa foi realizada algumas semanas depois, após novo show). Naquele ano, vieram dois derrames. Jamelão morreu tempos depois, em 2008, passado dos noventa anos (ele havia pedido para não publicar sua idade).

Na intenção de reavivar suas palavras, suas memórias, trago para Palavra Fiandeira a entrevista realizada numa manhã de sexta-feira. Leia a seguir os principais trechos publicados à época. 



O senhor vendia jornais em Vila Isabel aos 15 anos. Ali foi o seu primeiro contato com o samba, com a Mangueira?

Jamelão: Na época em que vendia jornais foi que eu conheci a Mangueira. Eu não vivia em negócios de samba, essas coisas, música, não tinha interesse nenhum nisso ainda. Lutava pela vida, tinha o trabalho que eu fazia para ganhar dinheiro e ajudar em casa. Para mim, samba não era nada, o problema era vender o jornal. Um belo dia, o Lauro do Santos, rapaz que trabalhava também na distribuição de jornais, me convidou para conhecer a Mangueira, uma coisa que jamais pensei que iria participar da minha vida. Fui lá por curiosidade, porque a maioria dos caras que vendiam jornais costumava ir. Eu vendia jornais em outros bairros, em trens, em bondes, andava pelas ruas ali da periferia. O carnaval era coisa que eu não participava. Não nasci no morro, não morava no morro, não conhecia o que era samba. Eu nasci em São Cristóvão (RJ), do outro lado do morro, onde não havia samba. Depois, fui morar em Engenho Novo. De repente, eu me envolvi com a Mangueira, me receberam bem e fui ficando. Eu não tinha nada para fazer e ia dar um pulo lá, ia bater papo, bater uma “pelada” de futebol. Quando eu vi, estava me envolvendo com música. Comecei a conhecer músicos. Depois, fui conhecendo as casas noturnas, fui na gafieira, aprendi a dançar, comecei a frequentar bailes. E como eu tinha queda para cantar, um belo dia me disseram: “Vá cantar no baile”. Entrei e fui cantar. Deu certo. Começou outra vida. Fui tomando gosto e aquilo foi me levando para aquele caminho. E no meio da música, encontrei pessoas que começaram a me ensinar um pouco de música. Comecei a caminhar e fiquei até hoje.

Foi na gafieira que surgiu o apelido Jamelão, correto?

Jamelão: Justamente. Eu frequentava a gafieira e o gerente da casa, seu Euclides, não sabia meu nome e estava me chamando para cantar, como eu não tinha apelido, ele falou “e agora, vou apresentar o Jamelão”. Foi o batismo. Quando eu vi, estava profissional da coisa. Não estava mais fazendo o trabalho do jornal como fazia. Fiquei mais na música porque tinha que trabalhar à noite. Estava amarrado e amarrado fiquei até hoje. Ainda estou rolando igual às pedras. Não posso me queixar, porque tirei algum proveito da coisa, para poder viver melhor, poder pagar minhas coisas, ajudar minha mãe, minha irmã. Tive cabeça para isso, hoje elas não estão mais comigo, mas valeu a pena ajudá-las.

Nesse começo, o senhor ouvia Vicente Celestino, Chico Viola, Orlando Silva, Cyro Monteiro...

Jamelão: É, eu me mirei nesse espelho, porque eles eram as atrações da época: Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Aracy de Almeida, Dircinha Batista, Linda Batista, depois, surgiu Elizeth Cardoso e outros cantores. Eu fui aprendendo muita coisa com esses veteranos, fui procurando progredir, fazendo conhecimento com compositores. Foi naquela época que conheci Cristóvão de Alencar, Lupicínio Rodrigues e João de Barro. Eram os “cobras” daquele tempo e eu fui aprendendo muitas músicas dessa gente. Um dia, me soltei mais e me levaram para gravar [simula expressão de susto], eu meti a cara e cuidei da minha vida, uma vida dependente de música... Tinha de estar sempre procurando apresentar coisas novas, diferentes. Consegui me tornar uma atração também... Agora é a hora de ficar devagar, não preciso ficar correndo muito, se for preciso, a gente tem que correr. Tudo se acaba, então, a gente não pode ficar dependendo de uma coisa só. Já fiz muitas coisas. Vivendo de música e também fiquei como funcionário público estadual [atuou como investigador de polícia]. Hoje, estou aposentado e procuro tirar proveito do que eu aprendi: música.


Quando o senhor está no palco, o prazer de cantar é o mesmo do início da carreira?

Jamelão: Comigo tem sido assim. Eu acho que sempre que a gente tiver que fazer alguma coisa, deve fazer com o coração, com boa cabeça e coração [aponta para a própria cabeça e bate no peito]. Muita gente não emprega isso. Mas a pessoa tem que se dedicar de corpo e alma, ou se dedica seriamente ou deixa de lado, não atrapalhe os outros, porque sempre tem alguém que quer produzir alguma coisa. Hoje está bem complicado, porque a gente vê muito cara querendo ser sucesso de repente e não é bem assim.



Hoje, o carnaval é muito diferente se comparado a antigamente, os blocos...

Jamelão: O carnaval hoje não existe. Hoje tem o que? Desfile de escola de samba... Aqueles blocos bons acabaram, não aguentaram a parada, se dissolveram. Hoje é mais um comércio. As escolas passaram a comercializar baseadas nos enredos. Apareceram elementos que se autorizaram a dominar o samba. As escolas estão presas a um contrato com a Liga e a Liga presa ao contrato da televisão. Não tem mais bailes. O carnaval passou a ser uma festa de dar lucro. Infelizmente, acabaram com a palavra carnaval. Tem uma festa que eles vão todo ano, pagam, às vezes, um preço grande em cima do desfile e fica aquele povo todo na arquibancada. São pessoas que querem brincar, mas como não tem mais carnaval de rua, de clube, vão para arquibancada e ficam lá vendo passar aquela porção de escola de samba, de horário marcado [enfático]. Samba antigamente não tinha horário marcado, hoje tem... É um galope, o sambista passa [Jamelão gesticula, finge estar caminhando no mesmo lugar] e não tem tempo para dar um “alô” para televisão. Lamentável. Eu acho que cada dia está ficando pior, porque é uma correria. “Vamos que vamos senão perde ponto”. É uma loucura o carnaval. Carnaval? O desfile. O carnaval, continuo dizendo, acabou, não existe. Existe desfile de escola de samba.



Sente saudades?


Jamelão: É uma pena porque em uma época, anos atrás, eles terminavam os desfiles ao meio-dia. Mas você via a qualidade da dança, as fantasias. Hoje, quando você vê já acabou o desfile. É mais ligeiro que um desfile militar... Muita gente vem de fora, paga não sei quanto pela fantasia para passar ali correndo. Ninguém mais pode dizer “ah, brinquei carnaval”. Não brincou, desfilou na escola de samba.

Victor Simón, autor de “Bom Dia, Café”, “O Vagabundo” e “Vagalume”, músicas que fizeram sucessos nas décadas de 1950/60, morreu recentemente em São Paulo (16/5/2005), aos 88 anos, no esquecimento, sem condições financeiras, morando em casa de amigos. O senhor acredita que falte um pouco de memória no cenário musical brasileiro?

Jamelão: Também isso faz parte da coisa, a falta de memória. De uns anos para cá, o público perdeu a memória desses compositores, porque as rádios não tocam mais. As músicas nas rádios que tocam não são essas músicas antigas de carnaval, ninguém quer fazer mais música deste estilo, para fazer samba já é difícil, quanto mais essas marchinhas de carnaval. Aquele samba de carnaval predominava de outubro até fevereiro, o público ficava impregnado de carnaval. Hoje, as escolas de samba competem, mas você aprende, às vezes, somente um samba daquela massa. O autor desaparece porque não toca. As emissoras estão procurando notícias de tiroteios, greves, é só o que você ouve o dia inteiro.

Quando o senhor vai interpretar um samba-enredo, ou encarar um show de duas horas, faz uma preparação especial?

Jamelão: Eu não faço preparação nenhuma. Eu digo “vou tomar um goró” e meto a cara [gesticula como se estivesse bebendo – no show, os copos de Jamelão levam água tônica e cerveja preta]. Vou fazer um gargarejo? Vou fazer um gargarejo coisa nenhuma. Gargarejo vai resolver? O “cara” que tiver que ficar rouco fica mesmo. Negócio de preparação é mentira, quem tem a garganta boa canta. Quem não tem não pode cantar.



Tem uma música que seja especial no momento da apresentação, que o emocione mais?

Jamelão: Bom, tem... É muita coisa [alterna a expressão, parece falar como se estivesse se referindo a outra pessoa: o personagem-cantor]... Ele tem que interpretar, tem que sentir aquilo que canta, se não sentir a música, ele não dá condição. A música pode ser de A, de B, de C, mas cada um tem aquela sua maneira de colocá-la no ouvido do público, fazer com que o público preste atenção. Antigamente, quem dominava? Orlando Silva. Chegava cantando aquelas músicas românticas. Ele, ao meu ver [olhos baixos miram a mesa], sempre foi o mais romântico dos cantores brasileiros. Suas músicas eram tiro e queda, gravar uma música com Orlando Silva era dinheiro em caixa. Cada vez que ele aparecia cantando marcava época. Todo mundo aprendia música dele. 


Muito obrigado.

Jamelão: A vida é um fio de linha, seja o que Deus quiser. 
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 DANILO VASQUES
Danilo Vasques é jornalista e fundador do blog CAFÉ DE OUTUBRO.
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Rodapé:

1 O programa Refletor, uma produção da Universidade Cruzeiro do Sul, foi veiculado pelo Canal Universitário de São Paulo entre os anos 1999 e 2008.

2 Ocas" é uma publicação da Organização Civil de Ação Social. Em www.ocas.org.br é possível conhecer mais sobre ela e sobre o trabalho de integração social desenvolvido.


Créditos da imagens:
Jamelão: Reprodução de TV, programa Refletor, Cruzeiro do Sul TV.
Danilo Vasques: Fotografia realizada por Jéssica Lima.
PALAVRA FIANDEIRA: 
Desfile da Mangueira - Blog de Meire Bottura
Jamelão tirando o chapéu - Estação Primeira. Org
Símbolo do Vasco da Gama, paixão de Jamelão - Google

Um comentário:

  1. Gostei de tudo na entrevista: do Jamelão (por quem minha admiração sincera aumenta a cada dia), do Danilo (que revela-se mais e mais um inquiridor arguto e perspicaz) e do Marciano, que dispôs em seu Palavra Fiandeira uma abertura democrática para a troca de saberes, a saber: ele, Danilo, Jamelão e nós, que podemos fruir de tanta informação interessante e inteligente.

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