EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

PALAVRA FIANDEIRA 31

PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA
ANO 1 - Nº 31 - 04/JUNHO/2010
                                                        


PETER O' SAGAE


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1. Quem é Peter O'Sagae?



Ainda não descobri, apesar dos muitos e muitos anos com o nariz no meio dos livros. Penso que os livros não me salvaram... A teoria prova minha ignorância; a literatura, verdadeira literatura, vem sempre para me provocar estranhamento.

2. Administra, realiza o belo e importante portal "Dobras da Leitura". Como surgiu esse site? Qual a história do nascimento de Dobras da Leitura?

Veja AQUI

Comecei a escrever comentários sobre literatura infantil e juvenil na internet, em 1998, e logo percebi a liberdade dos espaços que nós mesmos podemos construir. Isso alimentou o desejo de abordar e organizar vários assuntos relativos a essa produção literária tão criativa. Veio a ideia inicial para um site com quatro sessões; tempo depois, vieram muitos colaboradores e cada um ajudou a desdobrar uma perspectiva de leitura. Estão todos lá ainda on-line e tem aí dez anos que comecei as dobras do portal. Agora vou abrindo blogues e parece que, a cada dia, tudo precisa nascer de novo com detalhes e enfoques diferentes. Precisamos de outros sites e revistas sobre literatura infantil e juvenil, com dinamismo e foco.



3. Além da vida acadêmica — docência, pesquisa, viagens, palestras, eventos como seminários e congressos, você ainda mantém o Dobras. Como consegue conciliar tantos afazeres, como consegue coordenar o tempo?

Não consigo, não, vivo apanhando do tempo. Nasci libra e, se um dos pratos pende para um lado, o outro perde! Tenho em mente fazer, no máximo, duas viagens por ano, poucos eventos — e não curto repetir conteúdo, pois as reflexões são circunstanciais... Acabei me afastando das aulas na graduação e dos cursos de especialização, em 2005, para atuar somente na consultoria de projetos de leitura e editoriais. De um lado pro outro, conclui o doutorado em 2008 e pesquisas hoje só informais, no intercurso da curiosidade!
4. Em agosto, teremos a Bienal do Livro em São Paulo. Que tem a dizer sobre tão gigantesco evento? Contribui para a difusão do livro? E, claro, para a formação de leitores?

Peter com amigos em evento
Sempre gostei das bienais, principalmente quando nem dava para levar livros pra casa! Mas já era leitor e ia juntando dinheiro para chegar lá, comparar e comprar a novidade que via pela frente, os títulos que lembrava ou anotava nos cadernos... As feiras e bienais do livro contribuem sim para difundir a figura do livro e da própria leitura no imaginário de todos, numa atitude de reforço — incluindo aqueles que chamamos de não-leitores, se é que, no mundo atual, eles, de fato, existam!... Não podemos confundir um acesso mais facilitado aos livros com a formação de leitores: uma feira traz entusiasmo, conduz ao consumo; ao contrário, a leitura exige um movimento afetivo e intelectual mais lento e persistente.

5. Borges, numa conferência em Buenos Aires, na década de 1970, afirmou que o livro, para ele, é um objeto de culto (não no sentido religioso). Assim ele se referiu ao livro. E para você? O que é o livro em sua vida? Qual a sua relação com ele?

Vivi minha infância na década de 70 e creio que também guardo esse sentimento de culto aos livros, como um objeto de desejo — sempre à vista, claro, mas muitas vezes longe das mãos. Lembro da admiração que me provocava a coleção de Monteiro Lobato, na estante dos meus primos, ou a enciclopédia Larousse Júnior ou os livros Disney, na casa de vizinhos. Hoje pensando, sei que não me transmitiam tranquilidade como um material de leitura. Eu lia gibis, os suplementos infantis de jornais, almanaques farmacêuticos, os livros escolares de costume — os livros parados na estante pareciam pertencer à outra dimensão, deixavam-me meio fora do eixo, sei lá com que temor ou fantasia... De fato, pertencemos a uma geração visual, tátil e motora e isso determina nossa relação com os livros e mesmo certa qualidade que atribuímos a eles como objetos aí existentes. Então, veja você: quando começo a tirar fotografias dos livros para apresentar junto às resenhas e aos comentários mais breves, eu sei que estou querendo enquadrar o peso, a cor, o volume de páginas, a textura da capa contra outras superfícies, e aquilo mais que podem revelar “dobras da leitura” na materialidade do livro. Nós cultuamos o livro porque o conhecemos como coisa que nos dá segurança, se nos pertence, que desejamos próximos, enfeitando a casa, ou podemos até afastar, se a leitura nos aborrece.

6. Falando nisso: o que pensa sobre o temor e as profecias de que o livro, em seu formato tradicional (papel), irá desaparecer em no máximo cem anos?

Espero que antes! O livro na forma de cadernos e como um veículo de conteúdos mais rotineiros vem perdendo sua funcionalidade e serventia. O que você prefere: abrir uma enciclopédia ou digitar um verbete em qualquer ferramenta de busca ou referências? E a história da escrita mostra bem como os suportes materiais tornaram-se cada vez mais leves, permitindo que as idéias viajassem mais rapidamente... Compare o que eram os registros na pedra ou na argila, depois no pergaminho, no papiro, no papel, agora nos bits! Não ouço os mesmos temores aziagos no campo da música ou da indústria fonográfica... Já pensou levar consigo uns 1.500 discos de vinil em 78 rotações, se a mesma quantidade de canções caberia em um mp3-player?


7. Como vê a importância da Internet (blogs, sites...) na aproximação das pessoas e dos povos. Passamos por uma extraordinária revolução. A tecnologia veio realmente para melhorar o mundo? Confere?

A tecnologia sempre veio para melhorar o mundo, ou melhor, nossa estadia nele. Quando lecionei comunicação comparada, passava as três primeiras semanas dialogando com os alunos sobre o conceito de tecnologia. Vamos aos povos antigos da Mesopotâmia com a escrita cuneiforme: era necessário certo jeito para preparar as tabuletas e amassar a argila, uma inclinação do estilete e uma pressão para registrar sua escrita. Tudo isso já era tecnologia! E como hoje podemos nos sentir mais ou menos próximos a eles? Pelo tudo que ficou de registro material e pelo tanto que herdamos de seu conteúdo intelectivo e imaterial. De fato, com a internet podemos celebrar mais uma vez, depois do rádio, a noção de aldeia global, do ponto de vista funcional da tecnologia que temos à mão; mas, numa abordagem ideológica, talvez estejamos igualmente à beira do sentimento de incomunicabilidade que assombrava Brecht.

8. E a Literatura Infantil? É mesmo apenas para crianças?

Para a criança que vive em cada adulto, sim: somos nós adultos que criamos e sancionamos essa ou aquela literatura infantil. Às vezes, damos sorte e a fazemos coincidir com as crianças que vivem também à nossa volta!

Em evento literário
9. Peter é poeta. A poesia é necessária no mundo hoje? Poderia nos revelar um de seus poemas?

Poesia sempre! Gosto da ideia da poesia como uma “tecnologia da língua” — desde os tempos mais remotos de nossa história. Só para lembrar: a prosa, como discurso literário, quase nem conta 300 anos de uso. A poesia é a forma privilegiada pela literatura.

Vou puxar aqui um cordel que comecei a escrever em agosto de 2009 para esse ano de Copa do Mundo, mas não terminei. Na introdução, as estrofes são montadas em forma de quadra aberta acompanhada de terceto com versos ascendentes, em redondilha maior ou sete pés:
 
Leitores, peço licença
Para vir aqui contar
Com a minha cantoria
Um romance de placar:
Começa nos pés de Deus
Juro eu perante os seus
Co’essa pelota a brilhar.

Planetas todos não são
Outra coisa que só esfera
Bailando jogo celeste
Qu’eu acompanho aqui da Terra.
Ilumina acima o sol
Estrelas do futebol
Astros de nossa galera!


10. Menina na floresta e lobo mau. Por que essas histórias fascinam até hoje as crianças?

Porque traduzem afetos e ousadia, creio eu.

11. O que é para Peter a felicidade?

O silêncio no final de uma música, entre as cordas de um violoncelo, o que resta depois do agradecimento, o sono, a temperatura do corpo de quem se ama, o Cruzeiro do Sul, quando estive longe de casa, o céu de outono, o sol vermelho no amanhecer, a certeza de que vivemos nas pequenas coisas e seremos eternos em sentimentos.

12. Se "O Rei está nu", e você, por acaso, encontrar um livro com essa história e na ilustração, contrariando o texto, o rei aparece de ceroulas, o que pensa sobre isso?

Dependeria da localização do desenho no fluxo das páginas, do recorte no projeto gráfico do livro e em relação à seqüência da própria narrativa — só, então, eu poderia avaliar e pensar se aí ocorre uma ilustração da história ou uma censura à imagem do rei nu.

13. Pode nos contar, por gentileza, um livro que realmente tenha influenciado e contribuído de alguma forma com a sua consciência ou promovido mudanças em sua vida, mesmo que apenas no plano intelectual?

Somente um? O cavaleiro inexistente foi o primeiro Ítalo Calvino que li e abriu as portas de uma reflexão sobre literatura, imagem, narração, conduzindo-me por toda sua produção ficcional e chegar a seus ensaios, daí relacionando sempre a escrita literária com a tessitura teórica.

14. Fenômenos editoriais e certos deslumbramentos passam, mas, às vezes, têm sua validade. Nesse aspecto, Harry Potter e Paulo Coelho ajudaram na formação e ampliação de leitores?

Essa é uma questão ambígua, depende do conceito que temos de formação de leitores. Sucessos editoriais sempre significam sucesso de venda de livros. Não sei se tudo que sai de uma livraria é realmente lido — e o que seria melhor: lido outra vez! Um leitor bem formado, bem intencionado, é aquele que sempre relê os textos de seu interesse ou afeição. Ler é uma atividade repetitiva, de repertório. O que é efêmero não deve contar na vida de ninguém, só ocupa tempo e nos distrai.

15. O que pensa sobre o escritor ir como brinde na compra de livros? Ao se comprar um CD, não se pensa em levar para casa o cantor, mas é hábito nas escolas, quando da compra de alguns livros, o pedido para a ida do escritor. Como vê isso?

O primeiro encontro do leitor com o escritor deveria ser sempre através de um texto — e bastar-se ali para a maioria das pessoas. O que se criou foi uma necessidade equivocada ao atrelar-se a atividade de leitura com a presença de um autor. Se fôssemos seguir isso a risca, ninguém mais leria obras de séculos passados. Muitas vezes, a presença do autor alicerça a comercialização de seus livros... Antes de aguardar ou exigir a presença de certos autores na escola, o professor deveria ter bem clara a relação que deseja construir ao aproximar o escritor e o ilustrador das crianças e jovens. Já existe um script de perguntas e respostas prontas, e um circuito fechado acaba sendo desestimulante para qualquer um, não é mesmo?

16. Alguém, um amigo, um conhecido, quer o seu livro grátis, quer o seu livro de presente. Chegam até a dizer: quando você vai me dar o seu livro? O que comentaria sobre essa cultura com relação ao livro.

Existe aí uma visão ainda romântica da figura do escritor como um sujeito tão apartado da vida em sociedade, que nem teria contas para pagar, vivendo da arte, respirando apenas musa e brisa. É uma idealização bastante cruel e ainda inocente da posição do escritor e, ora, eu diria — do próprio lugar ocupado pelo leitor! Seria ótimo se pudéssemos escrever e presentear amigos, mas os meios de produção de livros não pertencem aos escritores, mas a uma casa editorial que os faz para comercializar. Seria ótimo se pudéssemos comprar livros e nos sentir igualmente recompensados com a leitura... Daí, se todos pudessem confiar que um livro valerá o dinheiro (e o tempo) empenhado(s), talvez ninguém necessitasse de subterfúgios para ler ou fazer-se lido.

17. Participa de alguma associação? Alguma entidade de escritores?

Não.

18. Atua como leitor crítico para algumas editoras. O que um texto precisa para ser bom?

Temos textos bons, textos literários e textos publicáveis... Para conseguir entrar nessas três categorias, arrisco a resumir que o texto necessita ter uma linguagem própria, uma história e personagens envolventes, que não sejam apenas um nome, ou um velho atributo, uma função, ou poemas tecnicamente bem construídos (sonoridade, imagens, ritmo). Respeitar a inteligência do leitor — e isso não é um critério tão subjetivo, temos estratégias lingüísticas que evidenciam a capacidade do escritor. O assunto, claro, é extenso e merece debates por longas horas. Ou um curso.

19. Estava no Chile nos dias do terremoto com um grupo de pessoas. O que fazia por lá?

No Chile

Fui para o Congresso Ibero-Americano de Literatura Infantil e Juvenil, o CILELIJ, a convite da Fundação SM, para falar a respeito da comunicação sobre a LIJ, nessa confluência de velocidade e novas linguagens, representadas pela Internet. A mesa-redonda estava marcada para a manhã de sábado, mas não chegou a acontecer. Em outubro, sairão as Atas do congresso com os textos de todos os participantes.

20. A Internet, dizem, está mudando o conceito de autor. Há quem garanta que o autor, tal como o conhecemos, será uma figura do passado. Poderia expor, por favor, o que pensa sobre isso?

Não tenho certeza de que o conceito de autor vá mudar tanto assim. Acredito que mudarão as relações contratuais ou os direitos autorais que nasceram juntamente ao processo de industrialização do livro, lá pelo século XVIII, não é isso? Há uns vinte anos, ou mais, o conceito de autor vem deslizando da ponta da produção artística para a recepção. Muito já se afirmou a respeito do leitor-co-autor. A partir de um texto, todos vão criando e dando palavras às suas leituras... Não é a Internet que muda o conceito de autoria, mas empresta-lhe um vigor diferente.

21. Poderia citar alguns autores que aprecia na Literatura Infantil e Juvenil, tanto do Brasil como no plano internacional?

Não acho muito proveitoso fazer uma lista, de improviso, sei que esqueceria nomes.

22. Poderia, brevemente, nos falar sobre a sua tese acadêmica?

Estudei as relações palavra&imagem no livro e na literatura para crianças e jovens, em um recorte bem particular das relações espaciais estabelecidas entre os códigos verbal e visual. Quero dizer, preocupei-me com a construção, a análise e a descrição, esquivando-me, quanto possível, da interpretação. E pude visitar e vasculhar os lugares de diálogo palavra&imagem na dimensão do livro, do projeto gráfico, da página impressa, da ilustração e da poesia visual. Tenho um resumo em meu blog. 

Com amiga

23. Deixe a sua mensagem ao leitor de PALAVRA FIANDEIRA.

Que a Palavra Fiandeira possa unir todos nós, como convém à rede virtual. Palavra que fia, palavra que pesca nesse imenso mar ciano — azul, azul!


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Entrevista Realizada por Marciano Vasques
Marciano Vasques é escritor e fundador de PALAVRA FIANDEIRA




6 comentários:

  1. Adorei a entrevista e o olhar tão centrado de Peter sobre a Literatura. Inpressionante a clareza de ideias, a paixão pela leitura que nos aproxima tanto e a verdade com que coloca seu pensamento e seu sentimento pelas tantas dobras que a leitura nos permite enxergar!
    Parabéns!

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  2. Muito interessante entrevista!Adorei conhecer sobre o autor Peter O'Sagae!Blog nota mil!Abraços,

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  3. Oi, Marciano, ótima entrevista, conseguiu passar o conhecimento, o humor e a sagacidade do Peter. Fiquei feliz de saber que O Cavaleiro Inexistente foi um livro que marcou a vida do Peter. É meu Calvino favorito, também, e um daqueles livros da ilha deserta.
    Abraços,
    Leo Cunha

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  4. Leo Cunha,
    Que alegria vê-lo por aqui.
    O Peter é ótimo, e a sua Palavra é mesmo Fiandeira.
    Um forte abraço de
    Marciano Vasques

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  5. Obrigado Anne Lieri,
    Também fiquei satisfeito com a entrevista.
    Obrigado pelo carinho e referências ao blog PALAVRA FIANDEIRA.
    Abraços,
    Marciano Vasques

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  6. Alessandra,
    Concordo com tudo o que você escreveu sobre o Peter.
    Agradeço o seu comentário.
    Um abraço de
    Marciano Vasques

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