EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

sábado, 2 de abril de 2011

PALAVRA FIANDEIRA — 59

PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA
REVISTA DIGITAL LITERÁRIA
02/ABRIL/2011
EDIÇÃO 59
NESTA EDIÇÃO:
LITERATURA INFANTIL

CONVIDADOS:
Angela Leite; Carmen Ezequiel; Cáthia Abreu; Edson Gabriel; Marília Chartune; Naomy Kuroda; Paula Laranjeira; Regina Sormani
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DIAS DE ABRIL
Marciano Vasques

Abril começa com o dia da mentira. Mas depois se transforma no mês da mais bonita verdade. A criança gosta de ler, adora ouvir histórias. Sei que vivemos na era tecnológica. Uma criança de nove anos já sabe tudo de celular e tem uma aproximação com o fascinante mundo da tecnologia que não dá para nenhum educador desprezar... Mas o livro está aí. Não importa o seu formato, se o de papel ou o novo, o digital, que aos poucos está se impondo. O que importa é que é bom ler literatura infantil, e mais que isso, escrever é uma delícia. Na verdade, é uma aventura deliciosa. E Abril, bem sabemos, é o mês da Literatura Infantil. Dia 2, hoje, Dia de Nascimento de Hans Christian Andersen, e dia 18, de Monteiro Lobato. Dois supimpas. Atingiram em cheio a alma dos pequenos. Um valente soldadinho de chumbo, e um sítio, lá, onde reside a imaginação. Um deles, o do sítio, queria que as crianças morassem nas páginas de um livro.  Criança que abre um livro, já está de mudança. E hoje, abrindo abril, está no ar a nova edição temática de PALAVRA FIANDEIRA, a primeira do ano.
Convidei gente que gosta muito de falar de literatura infantil. Leitores, essa conversa é sempre apaixonante. Ninguém sente o tempo passar. Aqui estão os meus convidados:
Paula Laranjeira, autora de textos ricos e elegantes, como "Memórias do cativeiro: vivências e resistências da mulher negra". Paula é também a responsável pelo blog "Pesponteando" — Selo Casa Azul da Literatura à primeira vista.

Cáthia Abreu, que ao lado de Bianca Encarnação, faz a revista "Ciência Hoje da Criança", inestimável publicação no universo escolar, presente nos acervos das Salas de Leitura e nas bibliotecas dos CEUs, referência ilustre no mundo infantil da curiosidade pedagógica, Une Literatura, Poesia e Ciência. Perguntem para a criançada sobre a revista.
Carmen Ezequiel, fiel colaboradora de PALAVRA FIANDEIRA, que abrilhanta as páginas da Revista Digital com suas entrevistas inesquecíveis, nas quais nos oferta, através de depoimentos de personalidades estéticas, o doce sabor e o doce aroma de Portugal, nosso querido. Agora, nesta edição temática, nos brinda com ilustrações do irmão.
Naomy Kuroda, amiga de coração, ilustradora sensível e com impecável trânsito no mundo da delicadeza, mora entre traços e cores, e se movimenta nas trilhas que pulsam. Já ilustrou diversas obras e é referência para os estudiosos.
Ângela Leite, respira sinceridade, é uma autora já presente em PALAVRA FIANDEIRA; estará, em entrevista, numa das próximas edições, com suas palavras a nos tecer a vida clara nesses dias tão secos. Autora de diversos livros, recentemente teve o seu primeiro e-book publicado. Colheu num abraço de aconchego e firmeza a nossa revista digital.
Edson Gabriel Garcia, um dos orgulhos de PALAVRA FIANDEIRA, autor com respeitável trajetória no mundo da Literatura Infantil e Juvenil, com livros saborosos ao deleite dos leitores. Atua na Associação dos Escritores de Literatura Infantil e Juvenil —AEILIJ — SP, e sempre que convidado, jamais se negou a participar da publicação, tornando - se um referencial na qualidade e no rigor da beleza.
Regina Sormani, personalidade querida em PALAVRA FIANDEIRA, uma das primeiras entrevistadas, conduz como coordenadora, ou melhor, presidenta, a AEILIJ-SP, onde faz jorrar em sua dedicação incansável as belas iniciativas que são acompanhadas pelos leitores do blog da filial paulista da entidade. É autora de diversos livros, e aprecia poesia infantil e contos de mistérios.
Marília Chartune Teixeira, artista plástica sempre presente em PALAVRA FIANDEIRA, residente em Santa Maria, RS, porém nascida em Tocantins, Minas Gerais. Em Copacabana, onde já viveu, produziu três mil quadros. Sua pintura me encanta, e solicito-me autorização para oferecer aos olhos do leitor, uma delas, aqui nesta primeira temática de 2011. 
 Marciano Vasques é escritor
Vamos então aos nossos convidados? Que as palavras voem como pipas coloridas. Quer o carretel?

ANGELA LEITE DE SOUZA

 PARAÍSO PERDIDO?


Dificilmente alguém que viveu a infância e a pré-adolescência no Brasil dos anos 50 e 60 do século passado deixou de se apaixonar pelo Sítio do Pica-pau Amarelo. Para lá nos transportávamos todos, fascinados pela linguagem inovadora de Monteiro Lobato, por sua grande comunicabilidade com o público infanto-juvenil e, de modo todo especial, pela irreverência de uma  personagem  ímpar – Emília, a Marquesa de Rabicó.
Nossa Terra do Nunca era uma idílica visão do mundo rural da época. Mas era também o resgate divertido do folclore brasileiro e de assuntos do mundo adulto, como astronomia e mitologia; e era a plataforma que o autor usava para expor seu pensamento sobre temas espinhosos como a guerra e a questão do petróleo, passados de modo quase subliminar para os pequenos leitores. É verdade que estes rejeitavam algumas obras em que o aventuresco era substituído mais explicitamente pelo didático, como “Aritmética da Emília” e “Emília no país da gramática”. E houve igualmente a revolta da igreja católica contra a “História do mundo para as crianças” e seu enfoque evolucionista, o que foi bastante para colocar o livro no índex e privar muitas pessoas de uma leitura interessantíssima, por bom tempo.
Particularmente, Emília (para alguns, o alter ego de Lobato) me impressionava bastante. Menina criada de forma amorosa, mas segundo valores inquestionáveis como o respeito ao próximo, a gentileza e a sinceridade, tinha eu sentimentos conflituosos em relação a essa boneca iconoclasta. Acredito que muitas das meninas “bem comportadas” (ou as mais questionadoras) desse tempo experimentaram igual sentimento e se identificaram com ela, justamente por sua personalidade transgressora.
Uma das mais constantes impertinências da personagem era o tratamento que dispensava a Tia Nastácia e que se transformou recentemente em motivo de polêmica nacional sobre o que é agora considerado um viés racista da saga do Sítio. Mas o possível incômodo que eu então sentia não foi suficiente para anular o prazer com que devorava cada livro. Afinal, eu era branca, de classe média, nem muito rica nem muito pobre... Vivia, enfim, ao largo de uma experiência mais direta com preconceitos.
Por isso me espantei tanto quando se ergueu na mídia, há alguns meses, a grande discussão em torno de “O Saci”, para o qual o parecer de uma especialista, enviado ao Ministério da Educação, acendeu o sinal vermelho. Segundo essa análise, a obra precisava ser revista, ou passar a ser editada com a devida contextualização histórica, para orientar professores e educadores. A reação dos “filhos de Lobato” (ou netos e bisnetos) foi tão imediata quanto inflamada: falou-se em banimento, em interferência descabida numa obra de criação, entre inúmeras outras definições indignadas.
A polêmica prosseguiu, ou se reacendeu, depois que Ziraldo criou uma ilustração para a camiseta de um bloco carnavalesco do Rio, em que Monteiro Lobato aparece abraçado a uma mulata de biquíni. Questionaram-se as possíveis boas e más intenções do artista. E choveram interpretações da charge, pró e contra. Como conciliar, enfim, no genial escritor paulista, que foi um divisor de águas na literatura infantil brasileira, o autor do impecável conto adulto “Negrinha” com o eugenista que pôs na boca de Emília termos injuriosos contra os afrodescendentes?
Tento me colocar no ponto de vista de uma criança negra, lendo as mesmas histórias que li com tanto gosto, e se sentindo agredida, ferida mesmo em sua autoestima. É possível? Sim, é até provável. Mas...encartar nos livros uma advertência aos adultos, para que coloquem Lobato no seu devido lugar? Ou, quem sabe, pior ainda: modificar o texto, adoçando-o (e mutilando-o também, claro) para torná-lo politicamente correto. Não se falou expressamente nisso, mas a obsessão reinante por uma postura ética pode levar a extremos desse tipo.
É preciso lembrar que, antes de tudo, uma obra literária de qualidade é uma obra de arte. Ainda mais quando seu autor consegue a proeza de, por meio dela, encantar gerações e gerações de leitores. E, sendo arte, um livro não pode nem deve ser encarado como um panfleto. Ou como recurso didático. Enquanto não se extinguir o uso pedagógico da literatura infanto-juvenil nas escolas brasileiras, a alternativa é preparar cada vez melhor o professorado para proceder a uma análise crítica (e sensata) de cada obra que vier a trabalhar com seus alunos. Medida que só surtirá efeitos, porém, no longo prazo.
Igualmente duradoura será a luta dos nossos negros para conquistar – como as demais minorias brasileiras – os mesmos espaços sociais e econômicos da maioria. Quando esse momento chegar, frases escritas em um livro já não terão nenhum efeito deletério em suas almas – serão vistas como o que de fato são, isto é, espelhos de sua época.
Virá também o dia em que a leitura de um livro, de autoria ou não de Monteiro Lobato, há de ser sempre fruto de livre escolha e, por isso mesmo, pura fruição. Quando isso acontecer, o Sítio, ou qualquer outro lugar literário onde se possa viver provisoriamente feliz, não mais será aquela espécie de paraíso perdido, mas sempre reencontrável, exclusivo dos leitores de determinada geração, mas, quem sabe, um Xangri-lá para sempre ao alcance de todos.

 Angela Leite é escritora
CARMEN EZEQUIEL


Ilustrações :  Nuno Ezequiel

Afonso e Roma às avessas


Afonso começa a falar. Por entre brincadeiras, choradeiras e trambolhões, as palavras que diz são repetições dos vocábulos que ouve da boca dos familiares. Mas, Afonso poderia chamar-se de Duarte ou Miguel. Ou, poderia ser uma menina e chamar-se Carolina, Sara, Mariana ou Madalena ou, outro nome qualquer.
Afonso tem dois anos; tem uma mãe, um pai, duas avós, dois avôs. Tem uma tia verdadeira e outra que é emprestada. Um tio na realidade e outro que está sempre pronto para a folia. O amor, o carinho, a felicidade e a brincadeira vivem no seu cantinho.
A felicidade sai do seu sorriso e a brincadeira, torna-se num misto de alegria e agonia para os seus pais que, algumas vezes se sentem cansados da jornada do dia.

Num momento, toca o seu piano e aspira ser um Mozart; no outro, senta a sua pequena cadeira que o ensina a falar e delira num palavreado tal como se fosse um orador nato. Imagina-se um Picasso, um Van Gogh ou um Césariny e inocentemente risca de azul a parede do corredor da entrada.
- Ups! Que a mamã ficou zangada!

Outras vezes, não muitas ainda, porque as suas pernas são curtas, monta-se na sua vaca andante e vagueia pelos montes, campos e prados à procura de bichinhos caminhantes, borboletas esvoaçantes e de tudo o mais animal. Noutras, vai no seu triciclo colorido pelas estradas curvilíneas e na cidade, se encontra com os mais variados objectos: um museu, um autocarro, muitos prédios sem quintal, coisas que não compreende e uma confusão de carros abismal.


 
Em casa, conforme lhe apetece, corre, corre e num blá, blá, blá, a energia bondosa a todos envolve. Mas, na rua, não pode brincar sozinho, porque ainda é muito pequenino. Afonso desce as escadas, sempre de mãos dadas com o pai ou a mãe; às vezes, com o avô ou a avó. É a avó que o leva à pastelaria onde conhece a Bia e a Maria.

Um dia, não muito cedo, nem muito tarde, alguém lhe leva um livro. Um livro de cores, de sons e de letras. Tem na capa um arco-íris e um menino como ele. Numa página tem a letra A, a cor azul e a água. Ouve o som do mar numa estrelinha dourada e como se fosse um menino peixe nada com o golfinho traquina, a baleia glutona e o


tubarão matreiro.
— Afonso também começa com a letra A! – Ensina o pai ao pequenino.
Na página seguinte a mãe lê a letra M. De mãe, da amiga Maria, do avô Manel, dos montes e montanhas e da madeira das árvores do jardim. Do macaco que salta de galho em galho e da Mimosa, que é vaca que Afonso monta e que cujos pés no chão ainda não chega.
A seguir, e logo que vira a folha, como se de uma bola de jogar fosse, estava bem no meio da página, um O redondinho. Era grande e do seu centro saía uma ovelhinha, pequena e com muita lã fofinha. Atrás dessa ovelha está outra e uma mais… são tantas as ovelhinhas que Afonso entra num sono profundo. Sonha a noite inteira com o rebanho de ovelhas e no pasto verdejante voltam a brincar todas as vezes que ele dorme.
Logo pela manhã, de rabinho limpo, fralda mudada e barriga cheia, vai buscar o livro com a capa das sete cores. Quase, quase a chegar ao fim, uma nova letra miudinha.
Desenhou-a com o seu dedo indicador. É o R. Nessa página, um rato e um rei pasmam no trono e vêem um reino desbotado. O reino é de Roma ou de outro qualquer. Afastado, longínquo Afonso olha o arco-íris e vê Roma às avessas.

É lá que vive o AMOR, a felicidade, a alegria e o riso. Onde as crianças celebram por um dia a mais que passa. É lá que Afonso vive.

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Quis, neste tópico sobre a literatura infantil, homenagear todos aqueles que falam com as crianças através dos livros; aos adultos que escrevem, ao que pintam e desenham, aos que lêem e incentivam; porque também eles vivem no mesmo “reino que Afonso vive”.
A Hans, a Marciano, a José Fanha, e a tantos outros por continuarem esse trabalho, muito obrigada.
Ao meu irmão Nuno Ezequiel, professor, ilustrador, pintor, escultor, contador de histórias; agradeço as ilustrações e também por permitir que a sua criança interior permaneça viva.

 
Carmen Ezequiel

Poeta, escritora, correspondente e colaboradora de PALAVRA FIANDEIRA em Portugal

CÁTHIA ABREU

Divulgação científica para crianças e Literatura – 
uma dupla de sucesso!

Pode até parecer complicado, mas escrever sobre ciência para crianças é gratificante e divertido. As mais recentes descobertas científicas e assuntos como nanotecnologia, biodiversidade, mudanças climáticas, micromundo, missões espaciais, podem deixar qualquer adulto de cabelo em pé. Já para as crianças é somente mais um desafio no seu dia-a-dia de descobertas constantes.
Há quem compre essa briga e veja em tais leitores um público especial. Despidos de qualquer constrangimento, esses pequenos leitores são capazes de dizer um “não gostei do seu texto” sonoro e sincero, que faz com que o mais seguro escritor trema na base e refaça seu contrato com o papel.
Textos científicos - que se transformam em artigos, seções e colunas - chegam todos os dias à redação. No trabalho editorial de uma revista de divulgação científica, a linguagem é modificada e é bem aí que mora toda a magia de falar para um público que tem somente a curiosidade (sanada ou não) como sua maior crítica.
Muitos textos chegam para os jornalistas carregados de nomes científicos complicados, jargões, que soam como uma língua estranha para o público leigo. Neste caso, há uma espécie de acordo muito importante para divulgar ciência para crianças: manter um laço estreito com a literatura e com todas as possibilidades de reescrita que ela pode proporcionar.
Longe de manter a ciência com a cara carrancuda que ganhou ao longo dos anos, o texto de divulgação científica para crianças é cheio de atrativos, que só a literatura pode emprestar. Por isso, divulgação científica e a literatura são grandes aliados. Onde mais recorrer? Afinal, o trabalho diário de um jornalista que divulga ciência pode ser, quase sempre, comparado ao de um tradutor. Em vez de jargões, palavras simples; em vez de explicações extensas, pequenos boxes.
Nesse sentido, há na literatura grandes barris de analogias onde estão contidas traduções para explicar conceitos científicos complicados e abstratos; e vários potes de sinônimos onde é possível reencontrar diversas palavras, que traduzem outras quase impossíveis de entender. Com a Literatura, podemos digerir jargões científicos e tornar o texto de fácil entendimento, sem banalizar e ferir conceitos que foram fundamentados por muito trabalho e dedicação dos cientistas.
O resultado do casamento entre a Ciência e a Literatura? Entendimento garantido para as crianças, grande aprendizado e diversão para ambos: leitor e escritor.

Cáthia Abreu — Revista Ciência Hoje da Criança

EDSON GABRIEL

PORQUE A LITERATURA INFANTIL 
É IMPORTANTE EM MINHA VIDA


Acostumei-me a pensar, escrever e falar sobre a importância da Literatura Infantil para os outros. Na perspectiva de convencer de que é bom e necessário formar novos leitores. Com uma experiência bastante prolongada nesse tema, sempre foi fácil enumerar razões para convencer pais, educadores e leitores mirins de que ler livros de literatura infantil é bom, é importante, faz bem para isso e para aquilo.

Hoje,  exatamente agora, inverti a orem das coisas e me pus a pensar – e escrever – sobre a importância da literatura infantil em minha vida. Continuo pai e educador, mas estou muito longe de ser um garoto. No entanto, a literatura infantil continua forte presença em minha vida. Por diversas razões.

A primeira razão, a mais imediata e prática de todas, é a razão profissional. Escrevo para crianças, indico livros para crianças, analiso, leio e comento livros para crianças e isso me faz, por força da profissão, acompanhar mais ou menos de perto o movimento literário do que se escreve para crianças. Autores consagrados, jovens revelações, autores estrangeiros, na medida do possível passeio por essa larga produção editorial. É quase impossível, penso, estabelecer uma classificação, uma corrente literária, ou uma tendência literária, tantos são os títulos, os temas, os modos de se abordar e se escrever e se ilustrar. Não há limite para a riqueza da criação literária feita para a criança. Creio que é o filão literário mais rico, mais amplo, mais profundo. Neste sentido, ler o que se escreve e é publicado para crianças, atualmente, é um imenso estímulo para quem escreve. Há de tudo e muita, muita, coisa boa. Não é à toa que o primeiro conselho que dou para quem me procura ou me pergunta o que fazer para escrever e publicar um livro para crianças é o seguinte: leia tudo que puder, antes de pensar em publicar.

Outra razão, essa curiosa, até porque nem saberia como fazer e para que fazer, é a vã tentativa de refletir sobre um “possível estatuto da literatura infantil”. Se você, meu caro leitor, não entendeu o que eu quis dizer com isso, acalme-se pois  me apresso a explicar. O que é literatura infantil? A resposta a esta pergunta, explicaria essa minha intenção de refletir sobre um “estatuto da literatura infantil”. O que cabe nesse estatuto? Não sei. Ou melhor, sei pouco. E uma das coisas que sei, que aprendi na minha prática de educador fazedor de outros leitores é que não cabe no “estatuto da literatura infantil” aquela literatura bem feita, caprichada, cheia de metáforas belíssimas, mas que no fundo diz respeito a crianças adultas que moram nos adultos. Mais ou menos o seguinte: escritos que os adultos adoram, com referências que os adultos entendem e gostam, mas que as crianças não entram na leitura. O que mais cabe nessa reflexão: até onde se limitam e se integram o texto e a ilustração? O texto sem palavras, só de imagens, é um texto literário? Faixas etárias para enquadramento de livros é uma boa? Qual é o limite da literariedade de um texto? Textos para crianças devem ter uma preocupação maior com o conteúdo? Quem tem razão nesta discussão atualíssima sobre o preconceito exposto na obra de Lobato? Embora não tenha resposta para essas perguntas, sempre que leio ou escrevo me vem à cabeça essa reflexão: isto é literatura infantil? Se é, é por quê?

A literatura infantil é parte importante de minha vida por uma outra razão gostosa, mais do que racional: gosto de ler ( e descobrir por conta própria) os bons textos. Aqueles que me fazem rir e pensar. Fazer rir é uma tarefa difícil, em qualquer arte, pois combina o cotidiano com o olhar inusitado e com a visão do ridículo. Fazer pensar é também difícil, principalmente aquele pensar que nunca antes foi pensado. Pensar o que pensa todo mundo é mais fácil. Pensar o que poucos pensam é mais difícil, muito mais. Por exemplo, em épocas idas, pensar sobre os papéis femininos, quando quase ninguém pensava isso e pouco se escrevia sobre isso. Muito menos para criança. Aí surge um texto literário escrito para as crianças, que faz as crianças rirem e pensarem, que faz adultos leitores pensarem sobre o assunto. Mais do que compêndios sociológicos, antropológicos ou pedagógicos. O texto abrindo gavetinhas da alma humana antes fechadas.

Também reputo importância à literatura infantil em minha vida por uma razão especial: a liberdade temática e formal. Escrever para crianças permite aos bons escritores uma liberdade consentida e pactuada de navegar por temas e formas antes não navegadas. Navegar é preciso; escrever para crianças não é preciso ( no verdadeiro sentido do ser preciso, ser exato). Não há precisão no escrever para crianças. A provável liberdade de aceitação do leitor mirim deixa o escritor à vontade para navegar em todos os mares e é nessa incerteza de onde pousar sua pena que permite o risco, a ousadia, a criação fora dos eixos, a invenção delicada. Mais do que escrever para adultos, estes mais severos e seguros em suas aprendizagens de leitor, escrever para crianças é não ter amarras, portos seguros, cais e âncoras firmes.

Além dessas razões anteriormente expostas, espero que convincentes para o precavido leitor, a importância da literatura infantil em minha vida se fez forte marcante, sobretudo porque foi nessas águas que aprendi (ou descobri) que ler nunca foi, não é e nunca será uma questão de hábito. Ler, literatura infantil e outras coisas mais, é uma questão de gostosuras, de prazeres. Que se apresentam na forma de descobertas, de possibilidades, de rebeldias, de remontagens, de outros olhares, de cotejamentos, de alternativas. Enfim, essas coisinhas quase sem importância que fazem tanta diferença em nossas vidas.







EDSON GABRIEL GARCIA
(Escritor e Educador)

 

MARÍLIA CHARTUNE TEIXEIRA

LITERATURA E ILUSTRAÇÃO



           UMA VEZ FOI PERGUNTADO AO ENTÃO PARTICIPANTE DE UM CONGRESSO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE, MAURÍCIO DE SOUZA, QUAL SERIA A CONTRIBUIÇÃO PEDAGÓGICA DE SUA CRIAÇÃO “TURMA DA MÔNICA” COMPARANDO COM A FILOSOFIA E PROFUNDIDADE DAS CRIAÇÕES DE HENFIL E ZIRALDO, TAMBÉM COMPONENTES DA MESA REDONDA DO CONGRESSO. APÓS INÚMERAS MANIFESTAÇÕES,  CONCLUIU-SE QUE QUESTIONAR  OS QUADRINHOS DE HORÁCIO, UM DINOSSAURINHO COMEDOR DE ALFACE, CHICO BENTO, O CAIPIRA E AMIGOS, SERIA SUBESTIMAR A LITERATURA INFANTIL QUE TEM NA ILUSTRAÇÃO UMA GRANDE ALIADA AO POVOAR O IMAGINÁRIO INFANTIL COM IMAGENS QUE FICAM NA MEMÓRIA TANTO QUANTO AS PALAVRAS.
              A LITERATURA INFANTIL É RICA EM FANTASIA, METÁFORAS, MUITAS VEZES SÓ COMPREENDIDAS NA IDADE DA RAZÃO, MAS ENCANTA E CONDUZ O PENSAMENTO  A VIAJAR AO REDOR MUNDO EM 80 DIAS OU IR A 20 MIL LÉGUAS SUBMARINAS COM JÚLIO VERNE.
               MAS A IMAGEM E A ILUSTRAÇÃO SÃO IGUALMENTE FUNDAMENTAIS. LEMBRAR DOS PENSAMENTOS DE SAINT-ÈXUPERY É TÃO REAL QUANTO DOS DESENHOS DO PEQUENO PRÍNCIPE NO SEU PLANETINHA.
                AS PALAVRAS PROVOCAM SENSAÇÕES, ENCANTAM  E POVOAM O IMAGINÁRIO TANTO QUANTO EXTASIAM O ESPÍRITO, MAS A MEMÓRIA VISUAL É PARA SEMPRE! AS FÁBULAS DE LA FONTAINNE, AS IMAGENS DA “RAPOSA OLHANDO PARA AS UVAS”, AS CARTILHAS DE ALFABETIZAÇÃO COM “O IVO VIU A UVA” E A “EMÍLIA” DE MONTEIRO LOBATO ESTÃO NA MEMÓRIA ASSOCIATIVA COM MAIOR RIQUEZA GRAÇAS AOS ILUSTRADORES.
                 ÀS VEZES A ILUSTRAÇÃO LIMITA A IMAGINAÇÃO DO LEITOR, ASSIM COMO O CINEMA MINIMIZA O EFEITO MÁGICO DA LITERATURA, MAS BONS DESENHISTAS CONSEGUEM ALCANÇAR O OBJETIVO DE ENCANTAR TANTO QUANTO UM BOM TEXTO.
                  PORTANTO,  A LITERATURA INFANTIL JAMAIS PODERIA SER DISSOCIADA DA ILUSTRAÇÃO, DEIXANDO NA MEMÓRIA VISUAL TANTAS REFLEXÕES QUANTO A PALAVRA ESCRITA.
             MARILIA CHARTUNE TEIXEIRA


Marília Chartune é artista plástica

NAOMY KURODA

Amigos.  
                                                                                                                                      Observo que “amigos imaginários” têm aumentado em muito a população do mundo infantil.
Embora a ideia seja interessante, feliz ou infelizmente não me recordo de ter tido o prazer de contar com um em toda a minha infância.  
Ausência de fantasia?  Não, com certeza, não. A verdade é que talvez não houvesse espaço para tal. Morávamos num bairro comercial cercado de lojas por todos os lados. Amigos eram os balconistas e nem sempre podia contar com eles, eram muito ocupados. Mesmo assim e mesmo enquanto minha irmã estava na escola, não havia solidão.
Embora, por um longo período do meu dia, ficasse sem irmã, sem amigos eu estava bem segura ao lado da minha coleção de livros que me faziam companhia. Eram os meus mais animados amigos que me conduziam às aventuras e viagens maravilhosas.
Muito antes que os alfabetos se instalassem dentro dos meus neurônios, os livros tomavam deliciosamente o meu tempo, apresentando-me aos lugares, às épocas e situações variadas. Assim colocado, talvez imaginassem que eu morasse numa casa cujos livros tivessem um ambiente especial, quatro paredes recheadas de estantes, portas de vidros onde os livros expunham com orgulho os seus títulos. Sim, era exatamente assim, na minha imaginação. Na minha imaginação.
Em nossa residência que ficava atrás do estúdio fotográfico do meu pai os livros eram muito queridos, respeitados e bem vindos, mas não eram novos nem possuíam uma estante especial.  Eles ficavam espalhados pela casa toda e nem ao menos eu sabia dizer quando eles se mudaram para a nossa casa. As suas páginas de folhas amareladas denunciavam sua idade assim como a grande quantidade de pessoas que supostamente sonharam e se emocionaram com as histórias ali contidas.  Lembro que ao folheá-las, eu sentia nos meus dedos as folhas ressecadas pelo tempo que mais pareciam cascas de madeira como se estivessem voltando às suas origens.  Era um orgulho ser herdeira daqueles livros, nunca me cansava das suas companhias, mesmo sem saber ler, tinha conhecimento de tudo que ele contava, pois inúmeras vezes minha mãe já havia lido-os para mim. Com a sua interpretação, com a sua entonação, minha mãe me fazia viver com realidade tudo que lá estava escrito. As ilustrações singelas, sem cores eram tão magníficas que me apertavam o coração.
Mesmo criança, eu tinha a plena consciência de que aqueles livros deveriam ser respeitados como se fossem os anciões da família. As capas dos livros marcadas pelo tempo e manuseio pareciam rugas requerendo consideração e dando um sabor especial a eles.   E eu sabia que ao abrir esta porta lá estariam todos os meus amigos e eles me levariam para participar de todas as suas aventuras emocionantes!
Tinha tanta intimidade com as personagens que muitas vezes eu tomava os seus lugares me sentindo uma princesa disposta a beijar um sapo, uma pobre menina vendendo fósforos, uma tartaruga precisando vencer o coelho, uma garota de capuz e mantos vermelhos, carregando o cesto para visitar a vovozinha, uma linda menina com longas tranças, sentir nas mãos uma lâmpada maravilhosa ou ainda, ser escrava e exterminar quarenta ladrões, subir num pé de feijão, melhor ainda, ter uma casa de biscoitos e chocolates para me esbaldar...
Como poderia sentir solidão?
Quantas vidas eu teria que viver para brincar com a Emília no “Sítio do pica pau amarelo”, defender a “Cinderela” da Madrasta e suas filhas, ajudar a Princesa a encontrar a ervilha sob os seus lençóis, conhecer o “Pequeno Príncipe” que me cativaria tornando-se eternamente responsável?
Que outros meios eu teria para viver todas as aventuras ou contar com inúmeros amigos de mundos e épocas tão distantes e diferentes a não ser através do livro?
Após ser alfabetizada a minha necessidade de ler era tanta que muitas vezes os tão esperados brinquedos, presente de aniversários e natais passaram a aguardar a sua vez cedendo lugar aos livros.
Livros não quebram, livros estão recheados de vidas e nos acompanham para sempre. Não consigo me recordar de todos os brinquedos que tive, mas as histórias que li, estes sim, irei lembrá-las de todas, para sempre.
Infelizmente os livros de páginas amareladas e capas enrugadas foram ficando em algum lugar, entre tantas mudanças de casas que fizemos ao longo da vida, mas todo o seu conteúdo seguramente transferiram-se para a minha memória e nunca mais me deixarão sozinha.
Os livros amarelados ou novos representaram a certeza de uma boa companhia e amizade em todo o período da minha infância e até mesmo nos dias de hoje.
Não, não é por acaso que fiz da ilustração de livros infantis e didáticos minha profissão. É neste mundo chamado Literatura Infantil que encontro sonhos, fantasias e grandes emoções.
 
NAOMY KURODA
(Ilustradora)
 

PAULA YVONY LARANJEIRA

A Literatura infantil: um encontro com a oralidade


Sempre que falamos em literatura infantil, pensamos logo em um monte de livros cheios de “Era uma vez”, “Num pais distante”, e “Viveram felizes para sempre”, com ilustrações coloridas, muitas vezes tão detalhistas que “até” impedem a criança de ela mesma criar seu mundo encantado. Por tal, este texto mais do que pressupostos teóricos apresenta o universo literário oral, muitas vezes, ignorado, mas não desconhecido de muitos não-intelectuais.
Quando sentados com alguns grupos, nas recordações dos tempos de meninice, é comum que façamos um tur pela infância em busca de livros infantis que tenhamos lido. Conheço gente que leu muitos livros e outros que leram poucos, conheço gente que podia comprar e outros nem ousavam pensar nesta possibilidade – na qual me encaixo –, conheço gente que fazia de tudo para ler um livro e outros que faziam de tudo para não ler, mas também conheço gente que mesmo sem ler nas páginas coloridas ou sem cores, páginas com cheiro de novo ou cheiro de mofo de um livro, não foram privadas da literatura infantil. Como?
Vou falar de uma gente do sertão, que na infância ouvida muitos causos. Aqui, e imagino que o mesmo se dê em outros lugares, é preciso bons escutadores para que os causos comecem a se desenrolar, igual a novelo infinito, pois um causo puxa outro. Sim, porque se o sertão amadurece precocemente muitas crianças pelo sofrimento, ele também serve como pano de fundo e matéria prima para muitos contos infantis que embalam por vezes o sono, os sonhos e a construção identitária das muitas crianças que ali nutrem suas alegrias e um infinito de possibilidades imaginárias.
Quando criança, não tive muito acesso aos livros. Mas nunca faltaram histórias a povoar meu imaginário, pois se livros eram coisa para quem tinha dinheiro, mãe ou avó contadora de histórias era para todo mundo. Assim acontece com muitos que não tendo livros tem avós, pais, irmãos e amigos narradores. E isso nos permite o contato com os contos populares, adaptados, muitas vezes, às necessidades do adulto para com a criança. As mães e avós quase sempre nos reservam contos de encantamento, moralizantes e/ou religiosos; os pais e avôs se encarregam dos contos moralizantes e terror; os irmão ou amigos ficam com os de terror e os humorísticos. Sem contar as sagas de família que também integram a colcha de retalhos da literatura infantil via expressão oral. Nesse sentido, Capek corrobora,

Um verdadeiro conto de fadas popular não se origina no momento em que o estudioso de folclore o colige, mas ao ser contado por uma avó para seus netos (...) Um verdadeiro conto de fadas, um conto de fadas dentro de sua verdadeira função, existe dentro de um círculo de ouvintes ( apud RADINO, 2001, P.75).

E é justamente este sertão e sua literatura, cheio de cantos, contos e encantos, que permitiu ao poeta e folclorista Marco Haurélio, exemplo frutífero de ouvinte e contador de causo, que seguisse os passos dos Irmãos Grimm, bem como os do Câmara Cascudo, recolhendo um infinito de riquezas guardados e repassados pela gente da terra aos pequenos, e  agora eternizados em Contos Folclóricos Brasileiros. Neste livro encontramos uma variedade de contos que se espalham pelo sertão através das correntes orais, em sua maioria, representada por mães, que sem ter outra forma mais didática de educar os filhos, lhes contam histórias para que inspirados nelas e através das ações das personagens e do desfecho, escolham suas ações  no decorrer da vida.
Como Haurélio enfatiza, aqueles textos não saíram de sua imaginação criadora, muitos daqueles contos ouviu ainda na infância de sua avó, de seu pai e de sua tia, outros ouviu de sábios narradores, a quem creditou todos os contos mesmo sabendo que não são autores, isto porque a autoria já se perdeu no tempo, fator necessário, como afiançar Câmara Cascudo, para o popular:

É preciso que o conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria, divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais. Que seja omisso nos nomes próprios, localizações geográficas e datas fixadoras do caso no tempo. (2004, p.13 apud LOYOLA, 2008, P. 23).
É interessante observar que neste livro, Haurélio possibilita ao leitor compreender que estas histórias, perpassadas pelos narradores do sertão da Bahia via oralidade às crianças/adultos, quase sempre tem a mesma raiz de contos de fadas de Perroult, Andersen, Irmãos Grimm, entre outros. Contos estes que foram se modificando, sofrendo alterações. Isto porque não havia nas camadas populares o registro escrito, pois a transmissão se dava via oralidade, fazendo com que as histórias sofressem adaptações que muitas vezes, as deixavam menores, maiores, com a junção de dois enredos num mesmo causo ou se dividindo, gerando dois causos.
Além disso, é possível perceber nos contos maravilhosos de autores tradicionais que as histórias se passavam num ambiente diferente dos nossos, já nos contos populares, a semelhança com o meio é o grande atrativo, pois há sempre a inserção de elementos comuns ao grupo transmissor na história narrada. Eis o grande diferencial.
Na tentativa de entender mais a relação e/ou disparidade entre a literatura infantil e o conto popular, foi necessário percorrer o caminho trilhado pela literatura infantil, no qual  encontramos duas formas corpóreas: a literatura “culta”, baseada na escrita; e a literatura popular, com base na oralidade. Porém, estes corpos distintos, aparentemente, se valem um do outro para manter certo equilíbrio, pois um bebe na fonte do outro.   Nesse sentido, há uma interdependência entre eles. O que não se entende é por que há um sentimento de menosprezo para como a literatura popular, especificamente a oral.
Consta que antes do século XVII, existiam poucos livros, e as histórias eram todas guardadas na memória e contadas para grupos de pessoas das mais variadas etnias e culturas. Mas motivados pelo interesse das crianças e por necessidades didáticas, alguns pesquisadores, como é o caso do Irmãos Grimm no século XIX, recolheram os contos da oralidade e registraram através da escrita em livros. Portanto, torna-se necessário salientar que os contos maravilhosos que conhecemos hoje têm início no século XVII com a “invenção” da infância. Antes disso, os contos pertenciam à cultura popular e eram compartilhados entre adultos via narrativa oral. Porém, com a criação da imprensa e a crescente valorização da escrita, houve um crescente apego às histórias escritas, tida como sinônimo de erudição. O que não era registrado através da escrita, mas transmitido via narrativas orais passava a se referir a algo popular, e, por tal, sem prestígio.
Assim sendo, percebe-se que mesmo não tendo acesso aos livros, esses não-leitores não eram privados do contato com o mundo encantado do faz de conta contido na Literatura Infantil, pois sempre havia/há um narrador experiente para este oficio. Pode ser um narrador sedentário ou viajante, como caracteriza Walter Benjamim no texto em que fala de Lescov. Sempre há sempre uma situação ou momento propício para que uma história-conto-causo nasça, basta um narrador, uma criança e/ou um grupo de crianças ou até mesmo adultos, para que se descortine para o leitor-ouvinte um mundo maravilhoso, pois quem não gosta de ouvir alguém contar uma história jurando que é/aconteceu de verdade?  



REGINA SORMANI

UM CONTO DE ANDERSEN: A RAINHA DA NEVE


Ganhei este livro, há muito tempo, quando tinha 10 anos de idade, da minha professora da quarta série, dona Lourdes Silveira. Sempre a considerei uma pessoa especial. Ficava encantada quando ela, para nos incentivar, nos presenteava com livros.



A RAINHA DA NEVE, um dos mais apreciados contos de Andersen, narra a história de dois amigos inseparáveis, a menina Gerda e o garoto Kay.
Ambos eram muito pobres, mas, possuíam um tesouro que os diferenciava das outras crianças da cidade: eles tinham um jardim secreto. Secreto na localização, quero dizer, pois , não se cansavam de elogiar o jardim para todos os seus amiguinhos e colegas de escola.
Gerda costumava dizer que ela e Kay cuidavam dos canteiros de flores e conversavam com as andorinhas. Kay, por sua vez, dizia que o lugar era maravilhoso e que dali, avistavam toda a cidade.
Kay e Gerda eram vizinhos num bairro pobre e afastado, morando em casas antigas, uma de frente para a outra. Nessas casas havia um sótão que ficava abaixo dos telhados. Cada sótão tinha uma janelinha que se abria para o telhado. Assim, Gerda e Kay, quando abriam suas janelas ficavam um de frente para o outro. Para que as crianças pudessem ter um jardim, os pais colocaram grandes jardineiras atravessadas sobre o telhado, de uma casa à outra. Dessa forma, Gerda e Kay  formaram um bonito jardim plantando rosas e todo o tipo de flores coloridas. O local também era excelente para ler histórias e fazer as lições escolares.
Na terra onde as crianças viviam, tudo mudava com a chegada do inverno. O frio era terrível, a cidade toda se cobria de neve.  A crianças se entristeceram, pois não mais podiam brincar em seu jardim. Ora, nessa época, um anãozinho perverso inventou um espelho mágico que refletia apenas maldades e coisas feias. Tentou, então, levá-lo para o céu para caçoar dos anjos. Durante a jornada, o espelho se partiu em milhares de pedaços do tamanho de grãos de areia que caíram na terra e atingiram os olhos e o coração das pessoas. Dessa forma, as pessoas atingidas se transformaram, só conseguindo ver o lado ruim da vida, tornando-se frias e indiferentes. Uma das vítimas do anãozinho foi justamente o menino Kay. Aquele garoto bondoso, de repente, tornou-se perverso para desespero de seus pais e de Gerda.  E foi assim que, um dia, um grande trenó branco surgiu na cidade e carregou Kay para muito, muito longe. Ele havia se tornado  um prisioneiro da malvada e insensível Rainha da Neve. O reino dela ficava no céu, além da lua.
Gerda, pequenina e frágil, não hesitou em sair pelo mundo gelado, sozinha à procura de Kay. A menina enfrentou perigos, passou frio, fome, venceu inúmeras dificuldades para salvar Kay. Ao encontrá-lo, chorou ao vê-lo frio como a neve e suas lágrimas derreteram a gélida massa que envolvia o coração do garoto. Dessa forma, ambos conseguiram voltar para casa, saudosos de suas famílias e de seu maravilhoso jardim.  Acredito que este conto de Andersen, singelo e emocionante, onde o bem vence o mal, vai continuar encantando todas as crianças, mesmo tendo sido escrito há muitos anos atrás.
 
Regina Sormani: Escritora e presidente da AEILIJ -SP
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REVISTA DIGITAL LITERÁRIA 
PALAVRA FIANDEIRA
Fundada pelo escritor Marciano Vasques
PRIMEIRA EDIÇÃO TEMÁTICA DO ANO 2O11

Um comentário:

  1. Marciano, he disfrutado cada una de las presentaciones de grandes creadores, asimismo su literatura... gracias por invitarme, Rocío

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