Naquele tempo meus pais diziam que lugar de menino não era dentro de casa.
Que é de formiga o meu berço,
Mas a alma é de cigarra.
As universidades chegaram à conclusão de que cordel é cultura.
PALAVRA FIANDEIRA
ARTE, EDUCAÇÃO, LITERATURA
Publicação digital de divulgação cultural
EDIÇÕES SEMANAIS
ANO 5 — Edição 150
19 ABRIL 2014
MOREIRA DO ACOPIARA
1.Quem é Moreira do Acopiara?
—Poeta, autor de mais de vinte livros e
duas centenas de cordéis. Nascido em julho de 1961, no distrito de Trussu, município
de Acopiara, sertão central do Ceará. Cresci ouvindo meus irmãos mais velhos e
os demais moradores da fazenda lendo cordéis e recitando estrofes antológicas
de repentistas, além de quadrinhas populares e histórias tradicionais que minha
mãe contava tão bem.
2.Esteve recentemente na Biblioteca Vila Nogueira, em Diadema, com
o professor Robson Santos. Pode expor gentilmente aos leitores de PALAVRA
FIANDEIRA algo sobre esse encontro?
—Esse Robson Santos é uma criatura
maravilhosa, um professor comprometido e um artista fantástico. Nascido e
criado na cidade de São Paulo, muito jovem aprendeu o sotaque do interior e
passou a estudar a cultura popular do Sudeste. Os causos que conta fazem a
gente bolar de rir. É um caipira falso. Com relação ao encontro, aconteceu da
seguinte forma: recebi um telefonema de uma Cláudio me convidando para fazer
uma explanação sobre o meu trabalho em uma biblioteca. Disse ela que eu deveria
declamar alguns poemas e contar fatos engraçados da minha vida. E que o tema
era "Oralidade". Relatou ainda que eu dividiria o espaço com o
professor Robson Santos. Dei pulos de alegria, porque já tinha assistido mais
de uma apresentação dele na biblioteca Belmonte, em São Paulo, onde também nos
apresentamos juntos, de modo que sabia da qualidade do seu trabalho. Para nossa
alegria, ao chegar na biblioteca ficamos sabendo que o público era formado por
professores do município de Diadema, funcionários das outras bibliotecas e uma
sala da EJA.
3.Quando passou a se interessar pela Literatura de Cordel e qual
foi seu primeiro cordel escrito?
—No lugar onde nasci e vivi até os
dezenove anos de idade a energia elétrica ainda era um sonho. Então não tinha
televisão. Escola por perto também não. A minha sorte foi que quando minha mãe
(professora do interior) se casou com meu pai, que era viúvo e pai de nove
crianças, levou na bagagem muitos livros, especialmente folhetos de cordel. inicialmente
ela alfabetizou aqueles meninos todos, e à medida em que eu e meus dois outros
irmãos fomos crescendo ela foi lendo muito para nós, contando muitas histórias,
incutindo no nosso coração o gosto pela leitura. Os contos fantásticos nos
fascinavam, assim como as histórias de Trancoso, mas a leitura de folhetos
acabou me prendendo, talvez pelo fato de ter poucos personagens e enredo curto,
o que facilitava o entendimento, além das rimas e da metrificação, o que
facilitava a memorização. com treze/quatorze anos aprendi sobre rima e
metrificação, e comecei a escrever os primeiros versos. Por esse tempo conheci
Patativa do Assaré, melhor poeta nordestino em todos os tempos. Ele fazia o que
faço hoje, ou seja, andava por aqueles interiores declamando seus versos em
escolas, teatros, universidades etc., falando da sua vida e dos seus livros.
Ele também tinha um programa de rádio em Juazeiro do Norte, todos os domingos
de manhã, e meu pai não perdia. Eu achava muito bonito o modo como ele
declamando aqueles poemas enormes, tudo de cor, e dizia que quando crescesse
queria ser como ele. Um pouco mais tarde lhe mostrei alguns poemas, ele leu com
atenção e me mostrou o que estava certo, o que não estava, onde deveria melhorar...
Foi minha melhor aula. Depois me ensinou outras coisas, e acabou se tornando o
meu melhor professor. O primeiro cordel escrito? Não me recordo mais qual foi. Mas
o primeiro que publiquei foi um que falava da vida e da obra de um padre lá da
minha região, que também foi meu professor de português e me emprestou muitos
livros morreu atropelado.
Literatura de Cordel em Aracaju
4.Trabalha em um projeto literário no sistema carcerário. Fale
dessa experiência, por favor.
—Tudo começou no Centro de Detenção
Provisória (CDP) de Diadema, que tem escola tradicional que vai da
alfabetização ao ensino médio. E resolveram convidar alguns arte-educadores
para oficinas de teatro, música, história em quadrinho, desenho e pintura e
comunicação e expressão. Em 2011 me convidaram para um 'teste' com o cordel.
Deu muito certo. O trabalho é feito lá dentro do raio. Fico cinco dias (uma
hora por dia) com um grupo de vinte presos. Um número três vezes maior assiste
como ouvinte, do outro lado da grade, o que me corta o coração. Inicialmente
falo com eles sobre cordel, de onde veio, como chegou ao Brasil, os
precursores, os principais temas, autores de ontem e de hoje, a evolução
gráfica, a xilogravura, sua importância na formação da cultura brasileira, sua
presença na música, na literatura, no cinema e no teatro e tudo o mais. Sempre
intercalando com poemas autorais, que eles gostam muito. Depois escolhemos
democraticamente um tema e começamos a elaborar um texto, dentro dos padrões. O
último encontro é mais para a leitura desse texto e avaliação. É quando
aproveitamos também para tirar dúvidas. Agora em 2014 vou passar também por
várias penitenciárias, da capital e do interior de São Paulo, só que para uma
palestra junto aos monitores presos, outra experiência maravilhosa, já que lá
dentro encontramos pessoas muito preparadas.
O poeta em evento literário
5.Dá muita importância à memória. É costume dizer que o Brasil é
um país sem memória. Acredita que de alguma forma a Internet (YouTube...) possa
reverter essa suposta realidade?
—O que acho é que a internet, a exemplo
do rádio e da televisão, pode contribuir muito no sentido de divulgar o que
fazemos. Mas não resta dúvida de que é preciso muito cuidado, pois acabam
postando muita bobagem. Cabe selecionar, escolher o que de mais substancial.
Por outro lado, nada melhor que pegar na mão um folhetinho, por mais simples
que seja.
6.A cada dia cresce o interesse pela Literatura de Cordel. A que
atribui tal acontecimento? Como analisa esse fato? Caso concorde com a
afirmação, naturalmente.
—As universidades chegaram à conclusão de
que cordel é cultura. E que pode ser um facilitador no processo de letramento.
Escolas do Brasil inteiro têm trabalhado cordel na sala de aula. Livros de
cordel têm sido adotados por escolas particulares, e o governo tem adquirido
muitos títulos e mandado para escolas de todo o país. Eu mesmo já tive vários
títulos adquiridos por esses programas de governo, como PNBE, Sala de Leitura,
Biblioteca Nacional, Biblioteca em Casa, Governo de São Paulo etc.
Na FELISB
7.No interior foi inaugurada uma Coldeteca. Você esteve presente?
Supõe-se que uma Coldeteca seja um espaço de preservação da Literatura de
Cordel. Conte-nos sobre essa iniciativa, e se ela já se ramifica em outras
cidades.
—Ocupo, com muito orgulho, a cadeira de
número 04 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), entidade
fundada em 1988 na cidade do Rio de Janeiro, que agrega cordelistas dos quatro
cantos do país e realiza excelente trabalho de divulgação e preservação da
literatura de cordel. Nós nos reunimos uma vez por mês, e é sempre uma grande
confraternização. Em uma dessas reuniões foi deliberado que, dentro do
possível, implantaríamos Cordeltecas Brasil afora. Inicialmente foram
inauguradas algumas no estado do Rio de Janeiro, depois em outras localidades.
No Ceará já foram implantadas quase vinte. Em janeiro de 2014 participei da
inauguração de mais duas, sendo uma em Ipueiras, berço da cordelista Dalinha
Catunda, e outra em uma pequena comunidade no município de Reriutaba, onde a
Secretária de Educação do município faz questão de incluir cordel nas escolas.
Obra de Moreira do Acopiara= Adaptação de clássico para a Literatura de Cordel
8.Publicou um livro intitulado “Canudos
e a saga de Antônio Conselheiro”. Pode nos comentar sobre a
abordagem dessa obra?
—'Os Sertões', de Euclides da Cunha, é, a meu ver,
uma das mais importantes obras já publicadas no Brasil. Leio esse livro desde
os meus 23 anos de idade, e de uns anos para cá vinha nutrindo o desejo de
trazê-lo para o cordel, muito embora sabendo que seria um trabalho árduo, por
se tratar de uma linguagem profunda e de um tomo volumoso. Até que decidi
trabalhar no projeto, que durou quase dois anos. Mas foi muito prazeroso. Li
mais uma vez, com dobrada atenção, resumindo cada capítulo. Depois trouxe o
maravilhoso enredo para a linguagem do cordel. São quase trezentas setilhas de
sete sílabas poéticas. Apresentei o texto para a editora Duna Dueto, que já
havia publicado outros cinco livros meus, e ela se interessou pela publicação.
Acertadamente convidou o poeta Marco Haurélio para cuidar da parte editorial.
Ele escreveu grande estudo, o que muito enriqueceu a obra. O paraibano Severino
Ramos cuidou das ilustrações.
9.Já
produziu dois CDs. Como é esse trabalho? Você canta? É compositor?
—A maioria dos poemas que escrevo não tem muito a
cara do cordel. São feitos para serem declamados. Gosto de recitar meus poemas
e tenho um público cativo. Então senti necessidade de colocar em CD alguns
desses meus poemas. Como tenho um programa de rádio em Acopiara há quase dez
anos, e em todos os programas declamo pelo menos um desses poemas, foi só fazer
uma pequena seleção, editar, masterizar e mandar prensar. Não canto. Entretanto
tenho várias composições gravadas, outras inéditas. E tudo acontece muito
naturalmente. Vou fazendo os versos e cantarolando. Muitas vezes consigo fazer
o trabalho todo, ou seja, letra e melodia. Quando não consigo, ou quando sinto
que não fica do agrado, mostro para amigos, músicos profissionais como Paraíso
(da dupla Mococa e Paraíso) ou Téo Azevedo, que cuidam da linha melódica.
10.Lançou
um livro de Cultura Popular chamado O Sertão é meu lugar. Esse livro tem uma
bela trajetória. Pode nos contar sobre ele?
—No ano de 2011 completei 50 anos de idade. O livro,
que tem quase 400 páginas, é uma espécie de celebração. Reúne a maioria desses
poemas que escrevo e declamo nas palestras, nos recitais e nas oficinas ou
workshops que realizo por aí. Mas está esgotado, sendo que uma segunda edição
já está sendo providenciada, agora com mais páginas.
11.Como
é o livro “Colcha de Retalhos” É um livro de poemas? Fala de sua infância?
—Trata-se de um texto que escrevi baseado em uma
história do mesmo nome que ouvi muitas vezes contada por minha mãe. Quando a
editora Melhoramentos me ligou argumentando que queria incluir cordel em seu catálogo,
mostrei o referido texto e eles gostaram. Convidaram o xilógrafo Erivaldo da
Silva, que reside no Rio de Janeiro, para fazer as ilustrações. Achei que o
livro ficou muito bonito. E está indo muito bem, pois a história é emocionante.
Eu e meus irmãos tivemos a melhor das infâncias. Não
tínhamos Televisão, Shopping Center, McDonalds nem computador, mas isso não nos
fazia a menor falta, já que tínhamos amplos terreiros para correr e jogar bola,
grandes açudes de água cristalina para compridos banhos e gostosas e fartas
pescarias, além de inúmeros pés de frutas doces e sumarentas. E éramos muito
amados. Naquele tempo meus pais diziam que lugar de menino não era dentro de
casa.
12.Deixe
aqui a sua mensagem final. Qual a sua PALAVRA FIANDEIRA?
—A palavra declamada, seja em prosa, seja em verso,
sempre me fascinou. Fiar palavras com harmonia não é fácil, mas é um trabalho
que faço com alegria e paixão. E minhas palavras finais aqui são de
agradecimento. Gostaria ainda de parabenizá-lo, meu professor Marciano Vasques,
pela iniciativa de divulgar autores brasileiros de diversos segmentos na rede
mundial de computadores, que muito tem contribuído no sentido de tornar
evidente também o cordel, essa importante manifestação da cultura brasileira. E
concluo com "Alma de cigarra", porque tenho certeza de que a poesia,
que me salvou aqui em São Paulo, torna o mundo mais bonito.
Alma de cigarra
Moreira de Acopiara
Sei que
tenho os meus defeitos,
Mas
vibro nas arrancadas.
Tenho
aos pés amplas estradas
E os
mais confortáveis leitos.
Gosto
de braços estreitos
No
conforto dos abrigos.
Tendo
calma nos perigos
Busco a
maciez das lãs
E a
leveza das manhãs
Para
acalmar os amigos.
Tenho a
esperança de quem
Possui
saúde e mobília.
Por
aconchego, a família,
Que é o
que na vida convém.
Foi
grande a luta, porém
Não
reclamei de cansado.
Andei
sonhando acordado,
Pisando
leve no chão,
Tendo
paz na decisão
E um
sonhar inacabado.
Não
maldisse a dura lida,
Nem as
virtudes finadas.
Não
tive cartas marcadas
Nem
gorda contrapartida.
Na busca
do pão da vida
Passei
por fraco e por tolo,
Fiz meu
barro e meu tijolo,
Conquistei
cada vizinho,
Destapei
cada caminho,
Meu
suor foi meu consolo.
Tive
estropiados pés,
Mas,
depois de renovado,
Levantei
o meu telhado,
Melhorei
as chaminés.
Na doma
de pangarés
Levei
coices, criei calos,
Mas
apreciei domá-los
Entre
piquetes medonhos,
Com
fortalecidos sonhos
De
algum dia ter cavalos.
Notei
que o tempo não para,
Nem
vacila no contrato.
Então
derrubei meu mato
E me
empenhei na coivara.
Não
temi quebrar a cara
Nem
confundir o estribilho,
Adubei
feijão e milho
Antes
mesmo de chover.
Ver a
planta florescer
É como
curtir um filho.
No meio
da caminhada
Vi a
saudade crescendo,
Que a
natureza está vendo,
Mas
permanece calada.
Que a
mão que puxa uma enxada
Manipula
uma guitarra,
Que ela
amarra e desamarra,
Dispara
canhão e terço...
Que é
de formiga o meu berço,
Mas a
alma é de cigarra.
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PALAVRA FIANDEIRA
PALAVRA FIANDEIRA
Fundada pelo escritor Marciano Vasques
Com amigos em lançamento de livro
Com Cacá Lopes e Assis Ângelo
PALAVRA FIANDEIRA
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