EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

domingo, 17 de outubro de 2010

PALAVRA FIANDEIRA - 43

PALAVRA FIANDEIRA
REVISTA DE LITERATURA
ANO 1 - Nº 43  - 17/OUTUBRO/2010

NESTA EDIÇÃO:
DIRETAMENTE DE COLÔMBIA

PEDRO ARTURO ESTRADA

PARTICIPAÇÃO ESPECIAL:
ROCÍO L' AMAR (CHILE)

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PEDRO ARTURO ESTRADA.
Falemos da inveja?



Dizem que a inveja é a mãe do ressentimento, um sentimento que não torce para que o outro seja melhor, mas sim que vá cada vez pior. Assim mesmo, esse sentimento também implica desagrado por não ter algo e, além disso, o anseio de possuir esse algo. Entretanto, geralmente, o invejoso não é um sujeito, sim um objeto material ou intelectual. Porém qualquer que seja o caso, a inveja é um sentimento que nunca produz nada positivo no que padece mas uma intransponível amargura.

Alcance psicológico

Uma das peculiaridades da atuação invejosa é que necessariamente se disfarça ou se oculta, e não apenas diante de terceiros, mas também diante de si mesmo. A forma de ocultação mais comum é a negação: nega-se diante dos demais e diante de si mesmo sentir inveja.


A inveja demonstra uma deficiência da pessoa, do ser invejoso, que não está disposto a admitir. Se o invejoso estivesse disposto a saber de si, a reconhecer-se, assumiria diante dos demais e de si mesmo suas carências.

A dependência unidirecional do invejoso com respeito ao invejado persiste ainda quando o invejado tenha deixado de existir. E esta circunstância - a inexistência empírica do sujeito invejado e a persistência, no obstante, da inveja com respeito dele descobrir o verdadeiro objeto da inveja, que não é o bem que possui o invejado, senão que o sujeito que o possui.


O invejoso acude para o ataque a aspectos dificilmente comprováveis da privacidade do invejado, que contribuiriam, de aceitar-se, a decrescer a positividade da imagem que os demais tenham dele (o invejoso tende a fazer-se passar pelo mais bem "informado", advertindo às vezes que "ainda sabe mais"). Porém aonde realmente direciona o invejoso suas intenções de demolição é à imagem que os demais, menos informados que ele, ou mais ingênio, tenham construído sobre bases equivocadas.

Como consegui-lo? Mediante a difamação, originalmente difamação. Com efeito, a fama é o resultado da imagem. A fama, por excelência é "boa reputação", "bom homem", "crédito". A difamação é o processo mediante o qual se objetiva desacreditar gravemente a boa reputação de uma pessoa.

Vamos agora onde está realmente o verdadeiro objeto da inveja. Não no bem que o outro possui, mas no (modo de) ser do invejado, que lhe capacita para o objetivo desse bem.


O invejoso é um homem carente de (algum ou alguns) atributos e, portanto, sem os signos diferenciais do invejado. Sabemos o que carece o invejoso a partir daquilo que ele inveja no próximo. Porém, além disso, esse discurso destaca a tática e implícita afirmação de que o atributo que o invejado possui se devesse possuir ele, e, mais ainda, pode declara que inclusive o possui, porém que, injustificadamente "não o reconhecem". Está é a razão pela qual o discurso invejoso é permanentemente crítico ou inclusive hipercrítico sobre o invejado, e remete sempre a si mesmo. Aquele a quem poderíamos denominar "o perfeito invejoso" constrói um discurso razoável, bem estruturado, pleno de observações negativas que há que se reconhecer muitas vezes como exatas.

Não apenas o sujeito invejoso é inicialmente deficiente naquilo que o invejado possui, mas que o fortalecimento da inveja, isto é, a dependência do invejosos com respeito ao invejado perpetua e agrava essa deficiência. Dizia Vives: " Com razão têm afirmado alguns que a inveja é uma coisa muito justa porque carrega consigo o suplício que merece o invejoso".

Uma das invalidades do invejoso é sua singular inibição para a espontaneidade criadora. Já é de por si bastante inibidor criar em e pela competividade, pela emulação. A verdadeira criação, que é sempre, e, por definição, original, surge de si mesmo, quaisquer que sejam as fontes das quais cada um se nutre. Não em função de algo ou de alguém que não seja a si mesmo. Pois, no caso de não seja assim, se faz para e pelo outro, não por si. Todo sujeito, enquanto construção singular é inimitável, é original, sempre e quando não se empenhe em ser como outro: uma forma de plágio de identidade que conduz à simulação e ao bloqueio da originalidade.

O tratamento eficaz da inveja acredita vê-lo o que padece na destruição do invejado ( Se pudesse chegaria inclusive à destruição física), para o qual tece um discurso constante e interminável sobre os negativos do invejado. É um dos custos da inveja, um autêntico desperdício, porque rara vez o discurso do invejoso chega a ser útil, e com frequência o pretendido efeito perlocucionário - a desqualificação da imagem do invejado - resulta num fracasso total.

A inveja tem sido frequentemente tema literário.

Dante Alghiere no poema de O Purgatório, define a inveja como "Amor pelos próprios bens pervertido ao desejo de privar a outros dos seus". O castigo para os invejados é que ele ao fechar seus olhos e costurá-los, porque haviam recebido prazer ao ver a outros caírem.

Na idade média o famoso caçador de bruxas, o cardeal Peter Beasbal, atribuiu à inveja ao demônio chamado Leviatã, um demônio marinhos, e que era apenas controlado por Deus.

Bertrand Russel sustentava que a inveja é uma das mais potentes causas da infelicidade. Sendo universal, é o mais desafortunado aspecto da natureza humana, porque aquele que inveja não apenas sucumbe à infelicidade que produz sua inveja, mas que além disso, alimenta o desejo de produzir o mal a outros.


José Antonio Marina sustenta certa nomenclatura afetiva em sua obra "O labirinto Sentimental", na qual divide os fenômenos afetivos em: afeto, sensações de dor prazer, desejos e sentimentos, subdividindo estes em quatro grupos segundo sua intensidade como: estados sentimentais, emoções e paixões. Este último grupo, las paixões, são definidas como "sentimentos intensos, veementes, tendenciais, com um influxo poderoso sobre o individuo". Seria neste grupo em que a inveja ficaria configurada.



O relato de Caim e Abel, que aparece no Gênesis da Bíblia.

Miguel de Unamuno afirmava que era o risco de caráter mais próprio dos espanhóis e escreveu para exemplificar seu romance Abel Sánchez, em que o verdadeiro protagonista, que significativamente não dá título à obra, ansioso de fazer o bem pela humanidade, apenas recebe desprezo e falta de afeto por isso, enquanto que o falso protagonista, que dá título à obra, recebe todo tipo de recompensas e afeto pelo que não fez. Como prevenir a inveja.



A inveja é consequência de dois processos psicológicos necessários para o desenvolvimento dos seres humanos: o desejo e a comparação. Para prevenir a inveja não se podem suprimir esses processos, mas sim deve-se controlar seus efeitos. Para que os dois processos mencionados produzam uma inveja sã, convém desenvolver habilidades que ajudem a se descobrir o que se sente e porque se sente: transformar o mal- estar emocional produzido pela inveja em um motor para conseguir o que alguém deseja ter, e controlar a hostilidade que tal situação pode gerar, evitando que se venha a se deteriorar as relações com os demais. A inveja é incompatível com a empatia, que desempenha um papel importante no desenvolvimento na compreensão de si mesmo e dos outros. Para prevenir a inveja é importante se tratar de estimular a empatia, e, através dela, a capacidade para se pôr em lugar do outro. A inveja se produz sempre em situações que são vividas como uma ameaça. Por isso, para preveni-la é preciso favorecer a confiança básica em si mesmo e nos demais, desenvolver expectativas e modelos positivos sobre as relações sociais e adquirir habilidades para responder à tensão emocional. Características que começam a se desenvolver desde a primeira infância. Um dos melhores remédios contra a inveja é aprender a confrontar diversas situações com otimismo, concentrando a atenção nos aspectos positivos da realidade. A inveja se produz sempre em direção à pessoas que ocupam posições próximas, em relações que se esperam de igualdade, porém que se convertem em de desigualdades ( assimétricas) , nas que se ocupa um posição inferior que não se aceita. Por isso, para se prevenir a inveja é preciso estabelecer desde a infância relações adequadas com os iguais. Para prevenir a inveja deve se aprender a relativizar as diferenças sociais e adquirir habilidades para se eleger adequadamente com quem, como e quando comparar-se, para evitar que tal comparação tenha um efeito destrutivo ( Extraído de "Que é a inveja?--- Uma enfermidade? de Beatriz Farah)

Frases sobre a inveja.

A inveja nos homens mostra quão miseráveis se sentem, e sua constante atenção ao que fazem ou deixam de fazer os demais, mostra o quanto se aborrecem. (Arthur Schopenhauer)

Castiga aos que têm inveja fazendo-lhes bem. ( Provérbio árabe)

A inveja é tão fraca e amarela porque morde e não come. ( Francisco de Quevedo)
Enquanto nasce a virtude,, nasce contra ela a inveja, e antes perderá o corpo sua sombra que a virtude sua inveja. ( Leonardo Da Vinci)

A inveja é mil vezes mais terrível que a fome, porque é fome espiritual ( Miguel de Unamuno)


O silêncio do invejoso está pleno de ruídos, ( Khalil Gibran)


O tema da inveja é muito espanhol. Os espanhóis sempre estão pensando na inveja. Para dizer que algo é bom, dizem: "É invejável". ( Jorge Luis Borges)

O invejoso pode morrer, porém a inveja nunca. ( Molière)

A inveja, o mais mesquinho dos vícios, se arrasta pelo solo como uma serpente. ( Ovídeo)

Branco de inveja


Se olharmos retrospectivamente o recorrido da inveja, ciúmes, entre escritores/ poetas, tem abarcado quase a totalidade da história literária, desde diversas perspectivas, que não é outra coisa que sua concepção e todo o que se desprende disso, um quebra-cabeças com todas sua peças. Naturalmente, consciente deste atoleiro, necessita-se primeiro localizar as dobras e despregá-las com essa habilidade de observar seu vestiário, , sua indumentária, visto que isso não é uma questão de intuição mas sim de reflexão.


A inveja, a encontramos em todos os campos onde estão o homem e a mulher, isto é, em qualquer atividade literária, educativa, crítica literária, filosofia, sociologia, entre outras, manifesta seu antagonismo, confrontações, esse desejo potencialmente provocador, ainda que isto não signifique que em si mesma seja má, se fosse sã, se os desejos não fossem fixados, permanentemente em uma espécie de obsessão ou mania, com sua matizes e formas, que fazem ver ao outro e à outra como rival , como objeto cobiçado.



Alguém disse - digo porque não relembro seu nome - que a forma em que concebe e interpreta o mundo o ser humano é a partir de sua convivência com outros membros da comunidade em busca de um bem comum, ainda que exista quem imita ao outro para obter a mesma coisa que ele ou ela têm. Se imitam e adotam valores, se imitam e adotam ações, se imitam e adotam perfis ou traços peculiares de outra pessoa, se imitam e adotam correntes literárias e conjuntos de ideias e estilos que são próprios de cada criador/a, se imitam e adotam inclinações e práticas sob o amparo da arte. Então o risco viria a ser não perceber o disfarce da inveja, nesta sorte de onda expansiva abertas às páginas literárias em internet.


Um conto para pensar


Assassinato no circo.

Eram gêmeos idênticos e haviam nascido em um circo, fruto do amor de um par de trapezistas.
A vida de um deles girava ao redor desse mágico cenário de arena e havia conseguido fama como palhaço. O outro era o exitoso proprietário do circo.


Desde pequenos, como uma brincadeira, fizeram um acordo: substituírem-se em seus papéis, e nunca algum havia notado a diferença. Não obstante, não reinava o amor entre eles senão a inveja, e ainda que ambos à sua maneira eram famosos, esse maligno sentimento havia conseguido obscurecer seus corações.


Numa fria e escura noite de inverno, depois da função, quando todos estavam entregues ao repouso, uma afiada lâmina de faca brilhou à luz da lua. O Certeiro impacto, cortou o coração de um dos irmãos que descansava confiante.
O outro não chorou no funeral, porém no fundo de seus olhos se podia ver um sombra.
O crime nunca se esclareceu e tampouco nunca se soube com certeza, quem dos dois havia morrido.


Que papel desempenha a inveja nas relações interpessoais para o êxito ou fracasso de seus vínculos?


Interessante assunto. Matéria ou ideia sobre a que vamos conversar nesta ocasião.
Razão pela qual temos convidado a Pedro Arturo Estrada, poeta colombiano. Sem dúvida será uma experiência em fins de aprendizagem conhecer as opiniões que sugere a entrevista para um tema que não apenas provoca conflito, mas, como um fantasma - a inveja- atua secretamente violando direitos humanos, intelectuais e outros, em seu próprio benefício. A palavra inveja procede do vocabulário latino "invidere", que significa "olhar com olhos maus". Entretanto, nós temos olhado com bons olhos a sensação de admiração que sentimos por Pedro Arturo Estrada para convidá-lo a conhecer seus pensamentos, razões e reflexões sociais e culturais para tratar de conseguir um rumo a nosso objetivo. Que não é um propósito hostil uma insídia, nem nada que suponha conotações negativa nem julgamentos. Em suma, estender, expandir e difundir, através deste ofício de escrever, um dos pecados capitais.

1 - A inveja, este sentimento tão antigo e tão comum é um dos mais difíceis de ser eliminados, e o que mais tem causado sofrimento à humanidade. Que pensa você, Pedro Arturo Estrada, desta percepção?

A inveja é o "pesar pelo bem alheio", disse a sabedoria, porém penso que é co-natural ao ser humano, desde sempre. Como o desejo, como o amor, o ódio, o medo. Todos eles causas de sofrimentos sem fim.
Sentimentos, emoções que conformam para o bem ou para o mal nossa condição. Que a inveja, segundo a Bíblia, tenha provocado o primeiro assassinato, e seja a origem secreta das guerras, dos ódios mais profundos , não deveria nos surpreender tanto. Estamos maduros para aceitar isso, para saber como contestá-la e inclusive começar a exorcizá-la dentro do âmbito de nossas relações. Porque a inveja é algo infantil, algo próprio da falta de maturidade, inclusive da imbecilidade senão mental pelo menos moral. Porque há também os imbecis morais.
Alguém diria que se trata de um sentimento oposto à admiração , porém no fundo, creio que seja também uma forma que tem a inferioridade de reconhecer-se ante o valioso, ante o mérito alheio. Daí ao perigo da lisonja, do elogio gratuito, da hipócrita admiração que costuma dar-se, às vezes, com um excesso enjoativo. "Não me admire tanto, não me queira tanto, não me elevem tanto" teriam que dizer muitas pessoas hoje em dia para defender-se. A pior inveja é aquela que se oculta sob um disfarce da cortesia, da amizade por conveniência, do amor calculado.




2. A inveja tortura a quem a tem, esquenta o coração, seca as carnes, fatiga o entendimento, rouba a paz de consciência, faz triste os dia da vida e distancia da alma o contentamento e a alegria". Como definiria você a inveja?


Parece-me curioso que esses sintomas da inveja coincidam com os do amor contrariado. É quase uma descrição quevediana do ciúme. A inveja é uma irmã de sangue do amor; é a tia cricri, solteirona e amargurada do amor. O invejoso, um enamorado ao contrário.


3. Os autores clássicos estão de acordo em afirmar que os invejosos estão condenados a odiar de forma insaciável, pois o ódio provocado pela ira se apazigua facilmente mediante a reparação, porém o ódio nascido da inveja não se amansa nem admite um pedido de desculpas. Pergunto-lhe: em que âmbitos pensa você que a inveja se desenvolve com mais força?


Em todos os âmbitos: sociais, profissionais, religiosos, artísticos...e diria inclusive que até nos âmbitos celestes. Recordemos a queda de Lúcifer do paraíso. A rebelião dos anjos contada por Milton. A inveja nos abriu as portas do inferno, da morte, poderíamos dizer.



4. Compara-se a inveja a um câncer silencioso ou a uma úlcera afetiva que corrói a convivência e e remove a paz. Qual é sua metáfora?


Me vem a mente a metáfora de Quevedo: "A inveja é fraca e amarela porque apenas pode morder, porém não come". É isso. Um animal que nos devora interiormente, um fogo gelado que congela o coração enquanto é objeto da inveja se ergue triunfal entre os olhos. Uma raiva impotente, escura e silenciosa que afoga a alma; um sangramento no subsolo do ser sob o esplendor do dia: um envenenamento secreto do espírito pela luz que lhe penetra dolorosamente de fora. Dependência, frustração, desejo masoquista de decompor a água que ampliará a sede. O invejoso deseja privar do bem que crê merecer para si ao possuidor legitimo, entretanto também deseja destruir ao possuidor, tomando seu lugar. O invejoso se crê inclusive vítima de uma injustiça que urge ser reparada.


5. Antístenes, dizia que "a inveja consome ao invejoso como o óxido ao ferro". Ovídeo, em sua obra Metamorfoses, nos apresenta a inveja como uma divindade terrível e venenosa, depreciada e odiada pelos mesmos deuses. Há alguma outra tese de algum escritor que lhe interesse compara conosco com respeito ao tema?



Já se disse o suficiente sobre isso, imagino. É um tanto redundante adicionar mais frases retumbantes a respeito e só é útil, acaso, nos afastar um pouco das admoestações ocas, bem intencionadas, ao estilo dos manuais de "auto-ajuda" tão em voga. Melhor é reconhecer-nos de uma perspectiva menos idealizada inclusive, de nossos méritos. Baixar um pouco a vaidade do ego, e até acreditar que no fundo os invejosos fazem parte do "equilíbrio ecológico". Porque o céu está repleto de globos de fantasia e a natureza costuma prover-se, como menina travessa, ajuizada. No fundo, o que penso é que devemos relevar essas coisas da inveja com menos pesadelo e sim com mais humor. O antídoto contra a inveja é o riso.



6. Convém recordar que, na atualidade, a inveja tem sido objeto de constantes debates e palestras, especialmente nos meios artísticos. Pensa você que é um atavismo, uma carga, um endosso que vem com o ser humano, a propósito de Caim e Abel, e que tem como cenário o âmbito da cultura, entre outros?



A cultura, entendida como um produto e uma expressão da vida social tem por força que estar entrelaçada por sentimentos e emoções de todas as espécies, os mais nobres e os mais vis também. Não poderia conceber-se uma cultura meramente "pura", "santa", "inocente", isso é sumamente perigoso como tem demonstrado de forma sangrenta a história das utopias religiosas e políticas. O que lhe dá expressão, vigor, interesse, força, variedade, legitimidade, identidade e beleza à cultura e suas expressões, é precisamente essa amálgama de substâncias, esse entrecruzamento de matérias imprevisíveis. E todo é atávico, até o desejo de perfeição e de beleza.


7. Ainda que saibamos que nada pode saber-se com certeza, mesmo assim as contendas exageradas entre poetas são conhecidas... estou pensando em meus compatriotas Pablo Neruda e suas rivalidade com Vicente Hidobro, Pablo de Rokha, e outros, especialmente, pelo gênio e qualidade de suas poesias. Em seu país se tem dado estes debates pelo assento da poesia que defendem com unhas e dentes os poetas?


É inevitável em todos os países e épocas a "guerra entre poetas", como dizia Gombrowicz. Não há uma batalha mais aferrada, incansável e malévola ao largo dos séculos. Recordemos a animosidade entre Lope e Cervantes ou a guerra dos vanguardistas de ontem e de hoje em quase todas as disciplinas. Na Colômbia, as invejas, os ressentimentos, as críticas mais exacerbadas nunca faltaram entre os diferentes grupos. O Festival de Poesia de Medellín, por exemplo, suscita toda classe de ataques, inclusive por conta dos mesmos poetas que alguma vez participaram dele. As diferenças ideológicas primam sobre as posições estéticas, o insulto pessoal, a calúnia entre uns e outros são o pão cotidiano. Poucas vezes a crítica se ocupa das obras em si mesmas. Em troca, são as desqualificações ad hominen o que se habitua.


8. Crê você que possa dar-se a amizade entre os Internautas? Existem os amigos virtuais?


Não sou tão otimista. Na rede tudo está por definir-se ainda. Há de tudo e para todos, porém cada vez mais se distorce a palavra real, se perde o sentido da proporção, a harmonia da linguagem pessoal, básica, poética, sincera. Tudo tende a tornar-se um território de ninguém, muito funcional, muito efêmero e mecânico para meu gosto, donde o padronizado, o anônimo é lei.
Entretanto, poderia ser que uns quantos alcancem a estabelecer um meio dessa extraterritorialidade, uns nexos excepcionais. Não o descarto.


9 - Neste universo de discursos e de atos artísticos, - familiarizado já com estes modelos-, como reconhece você o filantrópico que oferecem os diferentes blogs de poesia na Internet?



É um belo esforço, uma intenção por salvar precisamente essa palavra pessoal, como reservatórios da memória, do sentimento. Os blogs, sem dúvida, estão sendo substituídos pelo twitter e o chat descontinuo e fugaz, onde a instantaneidade fragmenta o discurso coerente, impede o pensamento, a reflexão profunda e sustentada. Creio que antes de nos precipitar à robotização absoluta do pensamento teledirigido, somos os poetas, os filósofos, os últimos moicanos da cultura tal como até agora tem sido entendida.

10. Por outra parte, não existem opiniões fechadas que nos levem a um certeiro pensamento sobre poesia, naturalmente gostaria de saber qual é a gênesis, seu princípio, o gérmen, seu embrião literário, o que o "condena" a escrever.

Só a necessidade de encontrar na linguagem minha própria explicação da vida que vivo, do mundo que fatal e milagrosamente me tem correspondido assumir. Essa constatação não se prende unicamente ao que trato de "escrever", obviamente, mas, sobretudo, ao que trato de "ler e compreender" no infinito texto que a arte, a história, a natureza, o pensamento e a literatura humana têm me oferecido desde aquela manhã de minha infância em um pequeno povoado perdido entre montanhas quando descobri os livros após escutar os contos da avó e de meus pais.



11. Em que pé acredita que esteja a poesia em seu país?


Com exceção de umas poucas vozes realmente originais, como a de Aurélio Arturo, falecido nos anos 70; José Manuel Arango, falecido em 2002; Rogelio Echavarría, Álvaro Mutis, Giovanni Quessep, Jaime Jaramillo Escobar, Juan Manuel Roca, Darío Jaramillo Agudelo, Piedad Bonnett, entre outros, a voz da poesia colombiana tem sido um tanto monofônica durante anos... Porém, já está sintonizando-se com a grande polifonia de América e do mundo faz um bom tempo.


12. Finalmente, deixo o espaço aberto para que exiba seu coração nesta entrevista.



SE CHAMA POESIA

Homenagem a Aldo Pellegrino

Se chama poesia tudo aquilo que fecha a porta aos imbecis, sim.
Tudo aquilo que abre, em troca, a visão e o segredo do mundo aos inocentes, àqueles que apostam tudo a nada, os que não guardam, não se cuidam, não se escondem e não calculam e evidentemente estão sempre ao ponto de encontrar como por casualidade inclusive o amor, a morte, a vida mesma.
Se chama poesia tudo aquilo que tira os pés após o impossível o que revela o outro lado das coisas,
o que canta ao final do desastre sem motivo algum. O que te joga fora de teu ser de forma inclemente ou invade em silêncio - maré estranha - o interior até afogar-se os olhos.
Se chama poesia tudo aquilo que estala de golpe com a palavra, sem aviso e sem lógica. O que não pode explicar-se propriamente aos prontos, aos que sempre têm a razão.
Se chama poesia tudo aquele que volta logo do exílio, a derrota, os medos. A luz que um dia retorna aos quartos fechados da velha memória; a antiga, recuperada simplicidade dos dias. O vento que reaviva uma chama na noite. O que nos sobrevive, o que sempre nos deixa mais cá da ferida, a perda mais profunda, como uma última, calada, oculta fortaleza.

* (Do libro: Oscura edad y otros poemas, Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2006)




BIOGRAFIA


Pedro Arturo Estrada Z. - Girardota (Ant.), Colombia, 1956. Poeta, narrador, ensaista e coordenador de oficinas literárias. Tem publicado: Poemas em branco e preto (Ed.Universidad de Antioquia, 1994) Fatum (Colección Autores Antioqueños, 2000), Escura idade e outros poemas
(Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 2006) e O tempo total (Universidad Externado de Colombia y Revista El Malpensante, Bogotá, 2009).
Prêmio de Poesia Ciro Mendía en 2004 e Luciano Pulgar en 2007.
Colaborador de diversas revistas de poesia e jornais do país, assim como de diversos eventos e
encontros, como o Festival Internacional de Poesia de Medellin. Seus textos têm aparecidos em diversas antologias nacionais e do exterior . Poemas de outra/parte é seu livro que já está no prelo, onde recolhe novos poemas e textos que haviam ficado de fora de suas publicações anteriores.
De sua poesia escreveu José Manuel Arango: "Seus poemas são os de alguém que viveu uma experiência da que alguém sente que volta com algum desencanto: alguém que deixou atrás, para dizer com um belo verso seu, " O sonho mal sonhado da juventude", e agora busca saber ' O que realmente nos pertence é o que temos perdido'. Com trechos amargos, sua poesia se orienta certamente até o mistério, como se tratasse de decifrar ' a aritmética exata da morte' porém também ' Os sinais que Deus escreve/em penumbrosos quartos'.




LOCUS SOLUS

I

Bem vinda, perfeita irrealidade,
diluição da certeza na fumaça angelical, espelhismo,
claridade mutante até a treva absoluta.
Bem vinda inconsistência do tato, visão duvidosa
que nos salva do dogma,
de crer que cremos.

Bem vinda, refração íntima da luz
no núcleo seroso do câncer que aniquila
a fé, o confiado vigor do músculo
e o impulso sensual.

Bem vinda, fatiga sábia
que começa a crescer mais densa,
tranquila nas artérias.

Amiga que dá tempo
depois de todo o tempo.


II

Já que permites ir a nenhuma parte e ao centro
da nebulosa onde só há silêncio.
Já que deixas reinar no sancta sanctorum do corpo
o vago sol da náusea, já que deixas morrer sem ruido
esse animal voraz que dentelha sob a pele: o amor e todas suas crias deletérias,
já que afixias a raiva,
já que apodreces antes que alcancem a brilhar
os perigosos, ambiciosos oníricos do cérebro,
já que humilhas o sangue com a mão invisível
que também poda os jardins, já que sobes pelos dedos afinando a música
que perderá os sentidos, já que
dobras o primeiro olhar
que busca afora a saída do labirinto, já que anda podem, nada podemos ante ti,
contra ti,

Não deixes livres então
nenhuma fissura
nenhuma ferida esquecida

Nenhum pavor solto.



ENQUANTO CIORAM EMUDECE

I

Nos picos do desespero
também o silêncio,
a embriaguez do silêncio.

Nos picos da lucidez
também a alegria
de não ser nada.

Nos picos da solidão
também o riso,
a máscara do riso.

Nos picos do vazio
o arredondamento de um corpo,
o desejo.

Nos picos do desejo
também o arredondamento
de seu vazio.



II

Depois não há mais que o suave balbúcio,
escutar e calar,
não acrescentar nada,
não concluir nada.

Há um momento de cruzes,
um tranquilo e frágil instante de maturidade íntima.
Admissão do outro.
Dimensão serena do eu
sob o sol frio de novembro.

Há uma ocultação,
um desligamento suave
que nos salva (ou nos perde)

- ao fim.



O BANQUETE


Algum dia a vida
será tão insípida como um vinho aguado.
Algo velho, algo rançoso arruinará o banquete
dos sonhadores vindos de todos os lugares.
O cansaço virá invadindo os olhos, as bocas,
as mãos dos convidados, uma ligeira tontura
aflorará os gestos. Niguém, entretando,
ousará erguer-se, permitir-se a grosseria
de um arroto, uma arcada, nem sequer uma tosse
ou um pigarro desatinado na metade do silêncio.
E a tensão acumulada que sem remédio
inchará os corpos até o insuportável
explodirá na felicidade demente
por séculos mantida à distância.

Beberá do vinho azul de um tempo
disputado ás lágrimas, se fartará
a vida da vida mesma...

Porém os poetas, ah, os poetas
às feras.




NOTURNO

Os passos, lá fora, a noite,
a aberta extensão do mistério
em sua profundidade mesma.
a maravilhosa rede do céu.

O estremecimento sempre novo
do desejo e seu súbito objeto,
a mão, o olho, a língua,
a voz que levanta essa palavra ao ar.

Mas também
a boca de sombra que te nomeia,
te fala em teu próprio idioma
e te conta do outro,
te grita e te revela
o estranho que todavia és.







REGRESSO

Este lado do horror
temos voltado a nos olhar.

Trazemos à casa um pouco de luz suja
recolhida na rua.
Abrimos uma janela
frente ao vazio
como se fosse um jardim.

Tomamos o café
lemos o jornal dominical
ignorando a hora em ponto em que tudo
começou a ladear-se,

- a ir-se.




RECONTO

É o dia a dia
sem perguntas demasiado escuras.
Só mínimas cerimônias,
minúcias, salvadoras rotinas.

E o sol sobre o corpo
como o ouro mais vivo
como o único abraço.

O ar que nos resta.
Cochilar sob as árvores finais
do parque rançoso e sujo.

Ler sob a desmemória,
não olhar demasiado
esse poço de sombra
que nos chama e cresce
sem freios
sob os pés

- e o silêncio.







DEIXA-TE IR, DIZEM


Insidiosas vozes do dia
novamente te reclamam.
Giras também
e te diria o êxtase,
a primeira manhã,
o vibrante fulgor
dessa palavra.

Deixa-te levar como a um menino,
te sussurra o anjo,
a voz da árvore próxima.

Deixa- te ir
suba também
dizem lá em cima.

Porém tu resiste
preso ao último fio
de incerteza

- insalvável.




LUGARES DO CORPO

Para Javier Naranjo

Cego lugar
donde cada palavra despe
o doloroso resplandecer do instante.

Donde estremece
o infinito que não diz
enquanto o corpo
vagueia entre ondas de luz
e sombra,

- silencioso.






ANDARILHOS

Nem rotas nem sinal certos:
Ir apenas adiante,
sem voltar atrás
a cabeça,
porque tampouco fica
cabeça ou apenas
uma sombra,
um vento frio,
uma fogueira
sobre os ombros
e os passos atados
ao medo que se abre

- debaixo.




OUTRA VEZ AS PALAVRAS

As mesmas palavras,
animais de ar,
mordentes, ávidas
escalando o nada.

Porém também aquelas
que todavia iluminas de noite
como tesouros de pirata:

Entrudo, distâncias, opalescência,
imprecisão, êxtase,
pântano, alvorecer.

Palavras
renascidas do pó,
palavras abandonadas

- Abandonando-nos.

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ROCÍO L' AMAR

Entrevista realizada por Rocío L' Amar
Jornalista, poeta, escritora e Presidente da 
Sociedade dos Escritores de San Pedro de La Paz (Chile)
É correspondente e colaboradora de PALAVRA FIANDEIRA
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PALAVRA FIANDEIRA
Fundada em 25 de Outubro de 2009
por Marciano Vasques
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4 comentários:

  1. gracias Marciano, la verdad es que me emociona leer una nueva traducción de las entrevistas del Salón... que no te quepa duda que Pedro Arturo también estará emocionado de saber que sus palabras han sido traducidas al Portugués...

    te quiero mucho hermano

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  2. Rocío, querida amiga, cuán generosa. Este regalo no me lo esperaba...¡En la hermosa lengua portuguesa todo se oye y parece mejor!...Te lo quedo debiendo por el resto de mi vida. Un abrazo por siempre, maestra.

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  3. Marciano, admirable escritor y amigo:sólo quiero agradecerle con todo mi afecto la acogida fraternal que me ofrece en su revista, la que me llena de alegría y reconocimiento hacia usted y su extraordinaria labor de difusión de la literatura y en especial, de la poesía de Brasil y de nuestros países. Sé que no pude corresponder debidamente en su día a la amable invitación que me hizo para colaborar como corresponsal desde Colombia. Pero confío en que pronto pueda hacerlo. Muchas gracias de nuevo y reitero que le estoy muy reconocido. Un abrazo grande y felicitaciones.

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  4. Caro Arturo,
    As páginas de PALAVRA FIANDEIRA sempre estarão abertas para divulgar a sua poesia, e também aos poetas de COLÔMBIA.
    Receba aqui o meu abraço,
    Marciano Vasques

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