EDITORIAL

PALAVRA FIANDEIRA é um espaço essencialmente democrático, de liberdade de expressão, onde transitam diversas linguagens e diversos olhares, múltiplos olhares, um plural de opiniões e de dizeres. Aqui a palavra é um pássaro sem fronteiras. Aqui busca-se a difusão da poesia, da literatura e da arte, e a exposição do pensamento contemporâneo em suas diversas manifestações.
Embora obviamente não concorde necessariamente com todas as opiniões emitidas em suas edições, PALAVRA FIANDEIRA afirma-se como um espaço na blogosfera onde a palavra é privilegiada.

sábado, 16 de março de 2013

PALAVRA FIANDEIRA — 107




"Sem o sentimento creio que não há poesia, sem o lapidar da palavra e o sentimento creio que não há emoção estética."



PALAVRA FIANDEIRA

REVISTA LITERÁRIA VIRTUAL

Publicação digital de Literatura e Artes

EDIÇÃO  107

ANO 4 —Nº107 —16 MARÇO 2013
EDIÇÕES AOS SÁBADOS

LUIZ CARLOS TRAVAGLIA



1.Quem é Luiz Carlos Travaglia?
Um professor e pesquisador. Professor de Língua Portuguesa e Linguística e pesquisador na área de Letras e Linguística. Atuo no Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia. Aqueles que se interessarem podem ver outras informações e meu trabalho no site www.ileel.ufu.br/travaglia
2.Os diversos modelos de análises do estudo da Língua falada a credenciam como analisável? Qual o parâmetro primordial para se debruçar sobre a análise linguística da língua falada? Há um motivo subjacente, como, por exemplo, a necessidade de se preservar um tesouro?
A análise e descrição da língua falada é perfeitamente possível e nesta tarefa são utilizados os mais variados modelos e teorias linguísticas. Ao se voltar para o estudo da língua falada, o pesquisador ou pessoa interessada deve se lembrar de que ela é uma modalidade da língua diferente da língua escrita e não tentar ver o oral com o olhar que já tem sobre a língua escrita. Isto pode levar a distorções que algumas vezes aconteceram. O que nos leva ao estudo da língua falada é conhecê-la melhor, como ela é constituída e funciona, todavia às vezes tem-se realizado estudos para preservar ou manter um registro de línguas em extinção como algumas línguas indígenas.
Textos acadêmicos em parceria
3.Mussolini decretou uma lei proibindo o uso do mesmo pronome para os dois sexos. O povo obedeceu, mas quando o ditador saiu do poder, o povo voltou ao “Lei”...A língua falada obedece ao coração da multidão?
A língua tem uma vida própria estabelecida em uma sociedade e cultura e não obedece a leis a não ser as suas próprias. Pouca coisa na língua pode ser regulada por lei. Um aspecto é o fato de ela ser ou não adotada como língua oficial de um país, mas isto não garante que ela será adotada. Por exemplo, o Português é língua oficial em Moçambique, mas apenas pequena parte da população o usa no dia a dia. Outro aspecto é a ortografia, que regula como escrever as palavras, porque, como todos sabem, não há uma correspondência exata entre grafemas (letras) e fonemas. Assim escrevemos “casa” com esta forma por convenção ratificada em lei e no Vocabulário Ortográfico Oficial. Esta forma foi escolhida entre outras formas possíveis: kasa, caza, caxa (para a letra x representando o som z lembre-se de “exato”), etc. A ortografia é uma convenção e para criar uniformidade se estabelece como será por uma lei. Haja vista o recente acordo ortográfico entre os países de Língua Portuguesa. Uma lei como a feita recentemente no Brasil, segundo a qual se deve chamar presidentes mulheres de presidenta, pode ou não vingar.
Em lançamento de livro (Congresso ABRALIN): com Profª Graça (organizadora); Fernanda Henrique e Priscila Starosky  (colaboradoras)

4.Mia Couto fala sobre namorar a Língua. A oralidade não tem jeito. Faz as suas próprias leis como “Amada Amante”. Dessa forma, exemplifique as conquistas nos estudos da Linguística diante da indomável?
A língua, tanto falada quanto escrita, realmente tem mil encantos e nos surpreendemos constantemente, quando nos dedicamos a estudá-la, com a maravilha que ela é. Mas a língua oral não é tão “Amada Amante” como se supunha. Ela tem suas regularidades que não tinham sido ainda observadas. O Projeto Gramática do Português Falado Culto veio mostrar isto, bem como outros projetos de estudo de língua falada de diferentes regiões e grupos sociais. A Linguística hoje propõe, na verdade, que não há uma dicotomia entre língua falada e escrita, como dois pólos sem relação, o que existe é um contínuo em que se vai da língua totalmente falada até à totalmente escrita com estágios intermediários que inclusive se revelam em gêneros textuais diversos. Por exemplo, uma conferência é muito próxima da língua escrita e mais afastada da conversação espontânea, apesar de ser oral. Por outro lado um bilhete familiar pode se aproximar muito da conversação espontânea. No Brasil foi desenvolvido um grande projeto de estudo da língua falada que é o PGPF (Projeto Gramática do Português Falado Culto) em que se envolveram em torno de 80 linguistas do país. Este projeto gerou um grande número de estudos a partir de 1988, com muitas publicações e, no momento, está sendo consolidada a gramática de referência do Português Falado Culto que terá seis volumes, três dos quais já estão publicados pela Editora da UNICAMP: Vol I: Gramática do Português Culto Falado no Brasil – Construção do Texto Falado; Vol II: Gramática do Português Culto Falado no Brasil – Classes de palavras e processos de construção; Vol. III: Gramática do Português Culto Falado no Brasil – A construção da sentença.
                                                                                              Mia Couto ©
5.Considerando que a Ciência em qualquer ramo está em constante evolução e transformação, e nisso reside a sua postura de humildade, ao contrário do que se prega no senso comum, numa validação teológica, de que a Ciência seria a “dona da verdade”: Diante disso, em seu universo de atuação, há um modelo teórico de estudo da Língua que possa ser considerado perfeito ou definitivo, ou mais próximo de tal?
Não. Não há modelo perfeito nem um modelo definitivo. Acredito que o conjunto de teorias, modelos analíticos e correntes da Linguística, permitem aos poucos ter uma visão mais completa de como a língua é e de como funciona. O surgimento de cada teoria ou modo de ver a língua nos permite conhecer um pouco melhor este fato e fenômeno social. Hoje há um grande número de modelos e teorias que ajudam a estudar a língua, percebendo de forma mais abrangente sua riqueza.
6.Há quem prefira a semiótica do corpo. Os sinais da percepção, da atenção, as manifestações visíveis no rosto, nos gestos, nos olhos...Há quem acredite que a poesia seja o sumo da Língua Escrita. Diante de tantos dizeres e saberes, é certo se afirmar que, assim como, por exemplo, a Filosofia deve tentar ultrapassar os muros da Academia, a Linguística, sem perder seu caráter científico, deveria buscar uma aproximação com o entendimento popular?
No meu entender sim. Muito importante para qualquer ciência é o como ela pode contribuir para que a vida das pessoas seja melhor. Isto é que dá significado social a uma ciência. A Linguística tem procurado se aproximar das pessoas em geral e também buscar, para suas descobertas, usos que contribuam para melhorar a vida. Assim é que tem progredido significativamente a aplicação de suas descobertas ao ensino de língua materna e estrangeira, ao tratamento de patologias da linguagem, à terminologia, à tradução, à inteligência artificial entre outras áreas.
7.Deve o educador ensinar aos jovens a gramática normativa, a chamada norma culta, numa categoria imperativa? Durante duas décadas, muitos professores da Rede Pública da Educação em São Paulo introjetaram que a gramática estava fora. De forma simplificadora, podemos dizer que num ideal construtivista, gramática tornou-se um “bicho papão”. Diante disso, acredita que ocorreu uma perda na expressão da uma nova geração de alunos? Ou ainda, é possível o lúdico, o prazeroso no ensino da gramática?
Antes de mais nada é preciso esclarecer o que se entende por gramática: a) o mecanismo da língua presente de alguma forma em nossas mentes e que nos permite usar “automaticamente” a língua? – Gramática Internalizada; b) a descrição da língua feita pelos estudos linguísticos em todos os tempos? – Gramática Descritiva ou Teórica; c) um conjunto de regras para “bom uso” (o que seja isto não é idêntico para todos) da língua? – Gramática Normativa. Sabendo isto, podemos dizer que o que a Linguística e a Linguística Aplicada preconizam hoje é que não se deve dar muita ênfase à gramática descritiva, especialmente nas primeiras séries do Ensino Fundamental, em que se trabalharia apenas com conceitos e terminologia mínimos e necessários à alfabetização e ao letramento inicial. Nas últimas quatro séries do Ensino Fundamental e no Ensino Médio o ensino de descrição da língua iria crescendo, levando o aluno ao conhecimento teórico básico para uma atuação cultural relativa ao conhecimento sobre a língua. Quanto à Gramática Normativa o que se recomenda é que haja uma instrução do aluno para usar as diferentes variedades da língua (inclusive a norma culta) de maneira adequada à comunicação em situações de interação. Assim sendo, não se tem mais uma imposição da norma culta como a única forma possível de uso da língua. O ensino da norma culta é, todavia, visto como importante e devendo ser feito com certa ênfase pela escola, dada a importância social dessa variedade da língua, inclusive por ser o meio de divulgação de toda produção cultural. Mas o ensino de norma culta deve ser feito sem equívocos como o de achar que se ensina norma culta ao ensinar classificação de palavras e análise sintática, por exemplo, que são na verdade conhecimentos de gramática descritiva. A meu ver nunca se preconizou que a gramática estava fora: apenas se relativizou a importância que era dada ao ensino de gramática descritiva ou teoria gramatical e se recomendou que fosse dado valor à norma culta, mas dentro de um quadro como o que acabamos de configurar. Prejuízos à expressão, se houve, devem ser creditados talvez a outros fatores, inclusive a equívocos no entendimento do que era recomendado pela Linguística.
                                                  Autor Luiz Carlos Travaglia ©
8.Quando, em meados da década de 70, as meninas e os moços da PUC levaram para a periferia, nas reuniões técnicas e pedagógicas dos alfabetizadores de adultos, novas ideias, tidas então como revolucionárias no pensamento: como o relativismo; e a partir daí tudo se tornou relativo, isso de certa forma empobreceu a escrita ou a Língua falada? Ou houve um exacerbado movimento interpretativo do que se propunha? Isto é: de fato, nem tudo é relativo?
Não se trata bem de levar um relativismo ao ensino de língua materna. Como dissemos na questão anterior, buscou-se um trabalho melhor configurado em termos do que a Linguística descobria e continua descobrindo sobre a língua. Recomendava-se, por exemplo, passar de uma atitude imperativa em relação à norma culta como sendo a única que deveria ser usada, por ser a única correta, para uma atitude que considerava outras variedades da língua como igualmente válidas, dependendo da situação de uso, sem, todavia, desvalorizar a norma culta que tem de ser ensinada na escola a quem não a domina. Também se evidenciava que o ensino de gramática descritiva não tinha muita influência na competência comunicativa das pessoas e seu objetivo, portanto, não podia ser o desenvolvimento dessa competência. Era preciso antes saber usar os recursos da língua de forma adequada à produção de sentidos entre interlocutores, o que implica um trabalho voltado para o potencial significativo dos recursos da língua. O que talvez tenha gerado problemas no ensino tenha sido uma interpretação inadequada dessas propostas, mas não acreditamos que tenha havido empobrecimento da língua seja oral, seja escrita. O conceito de empobrecimento de uma língua é bastante discutível.
9.Curiosamente, Moji das Cruzes virou Mogi das Cruzes, Guaianases transformou-se em Guaianazes. Dessa forma, nos parece claro que o uso popular orienta e força, no bom sentido, uma adaptação do dicionário. Sendo assim, duas formas convivem, e em dado momento, uma, a “inventada” pelo popular, se torna predominante. Poderia, gentilmente, nos falar sobre isso?
No seu exemplo o que mudou foi apenas a ortografia e sobre isto já comentamos. Como dissemos, a língua é uma construção social e histórica e as línguas mudam, mesmo que uma geração não seja suficiente para perceber esta mudança. Se não mudassem ainda estaríamos falando e escrevendo Latim ou alguma outra língua anterior a ele. O que você refere são os fatos que a Linguística estuda como variação e mudança linguística. Na variação você tem diferentes formas coexistindo (por exemplo: você/ocê/cê ou para/pra). Num dado momento uma pode predominar e a outra ser “esquecida”. Evidentemente os estudiosos vão reconhecer que uma forma deixou de ser usada e isto será registrado em algum lugar (gramáticas, dicionários), consagrando-se a nova forma como “correta” ou a que existe. Embora falemos muito “cê vai na festa?” ainda escrevemos “você” e quando queremos usar norma culta dizemos ou escrevemos “Você vai à festa?”. Talvez algum dia escrevamos “cê” e o uso da preposição “em” com verbos de movimento passe a ser visto como norma culta, embora já seja usada há muito tempo. Apenas para ficar na regência verbal, “Você assiste o filme ou assiste ao filme”? Muitos insistem numa norma culta que exige que se diga “Assisti ao filme”, mas outros já acatam dizer “Assisti o filme”, como a norma culta atual e a outra forma como um arcaísmo. A validação das mudanças é lenta. É preciso não esquecer também que, na verdade, a norma culta falada é diferente da escrita em vários aspectos. Portanto, você tem razão: podemos dizer que o uso feito pelos usuários da língua é que manda, mas a aceitação oficial de uma nova forma é demorada.
Escrita originalmente indígena sofre influência popular; A língua escrita se transforma (foto©)
10.Pode expôr para a Fiandeira os seus livros? São todos voltados para a Gramática? Qual foi o seu primeiro título? Como surgiu, no senhor, esse interesse, essa gana da alma, de estudar a Língua?
Meu primeiro livro foi “O aspecto verbal no Português: a categoria e sua expressão”. Creio que posso dizer que tenho livros em duas linhas: uma mais teórica, descritiva da língua (O aspecto verbal no Português: a categoria e sua expressão; A coerência textual e Texto e coerência), outra mais voltada para a questão de como deve ser o ensino de Português para falantes nativos (Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática; Gramática: ensino plural e Metodologia e prática de ensino de Língua Portuguesa). Nesta segunda linha são incluídos os livros didáticos da coleção A Aventura da Linguagem (1º a 9º anos do Ensino Fundamental) que escrevi em conjunto com outros colegas. Minhas demais publicações (artigos e capítulos de livros diversos) também ficam nestas duas perspectivas e quem se interessar pode vê-los no site que indiquei na primeira pergunta.
                                                                           Livro de Luiz Carlos Travaglia
Não sei como tive essa vontade de trabalhar com a língua. Sei que desde os tempos de Ginásio (hoje parte final do Ensino Fundamental) eu já sabia que queria ser professor de Língua Portuguesa. O pesquisar a língua foi surgindo e crescendo com o tempo. Este trabalho para mim representa um prazer muito grande.
11.Penso que o aprendizado da Poesia transborda em Guimarães Rosa, penso que Jorge Amado nos transporta generosamente aos galanteios da voz popular. São vieses. Ainda com relação à questão literária aqui, a poesia, especificamente, deve lapidar-se ao máximo na forma apenas, ou é necessário, e até urgente nas circunstâncias contemporâneas, estar imbuída de sentimentos autênticos e profundos?
Sem dúvida as duas coisas, pois as duas são essenciais à poesia e à arte com a palavra em geral. Sem o sentimento creio que não há poesia, sem o lapidar da palavra e o sentimento creio que não há emoção estética. A arte literária demanda uma função poética da linguagem que, como ensinou Jakobson, foca na linguagem em si, mas o que essa linguagem veicula também é essencial.
Obra de Guimarães Rosas

12.Deixe aqui a sua mensagem final. Qual a sua PALAVRA FIANDEIRA?
A palavra e todas as demais linguagens que o homem estruturou, para muitos por concessão divina ao homem, são um milagre que nos faz humanos. Como tal acredito que devem ser usadas para criar harmonia, encontro, paz, beleza. Aperfeiçoar-se no uso das linguagens especialmente da língua, da palavra é um dever de cada um de nós, assim como usá-las para o positivo. 
O que pode esta língua? (Caetano Veloso)
Caetano e Elza Soares cantam '´Língua", composição do artista.
                                                                                Livro de Luiz Carlos Travaglia


                              PALAVRA FIANDEIRA
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Publicação semanal
Edições aos sábados
PALAVRA FIANDEIRA:
Fundada pelo escritor Marciano Vasques

Um comentário:

  1. Que prazer ler este texto, Travaglia. Obrigado, Marciano, por nos apresentar este diamante lapidador.
    Concordo com ele quando assevera "o conceito de empobrecimento de uma língua é bastante discutível." Há muito que essa discussão está superada pelas novas apropriações das potencialidades da língua enquanto prática cotidiana.
    Há braços para abraços...

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